Ray Bradbury era um
excelente contista. Provavelmente porque livros de contos vendem menos que
romances, ao reunir essas histórias em livros, ele dava um jeito de costurar as
histórias, de modo que em conjunto elas parecessem uma só história dividida em
partes.
Em nenhum livro esses
estratégia foi tão bem sucedida quanto em o Homem ilustrado, publicado na
década de 70 como Recordações do futuro (no Brasil o livro também ganhou o título
de Uma sombra passou por aqui).
Bradbury imagina um homem
cujo corpo é todo tatuado. à noite, as imagens se mexem e cada ilustração conta
uma história. Mas há um espaço especial nas costas, em que a pessoa que está
observando os contos poderá ver a sua própria história... E a forma como irá
morrer.
Essa introdução não só é
genial, como acaba sendo, surpreendentemente, a melhor parte do livro, graças à
prosa poética de Bradbury: "Ali sentado, notei que ele era uma confusão de
foguetes, fontes, pessoas, com detalhes e cores tão vívidas, que eu podia
escutar as vozes, indistintas e abafadas, murmurando entre as multidões que lhe
habitavam o corpo"
As imagens são descritas
como se El Greco tivesse pintado miniaturas, com suas imagens detalhadas, cores
sulfurosa e anatomia alongada.
Os contos seguem a mesma
linha de prosa poética e descrições que provocam ricas mensagens mentais.
Em “Caleidoscópio” um
foguete explode e seus tripulantes ficam a deriva no vácuo. Poderia ser apenas
uma ótima história de suspense ambientada no espaço, mas Bradbury vai mais
além, transformando a história num poética investigação psicológica. Esse
contexto é exemplificado no tripulante que invejava o outro por sua abordagem a
respeito da vida: “Eu não tive nada disso. Quando eu vivia, eu o invejava.
Quando eu tinha outro dia à minha frente, eu o invejava, suas mulheres e seus
prazeres”.
Em “O outro pé”, o autor usa
a ficção científica para refletir, de forma poética e alegórica sobre uma das
maiores chagas da América: o racismo. Na história, os negros foram enviados
para Marte, onde construíram uma civilização. Depois de muitos anos, uma nave
de homens brancos se aproxima e muitos querem se vingar pelos anos de
linchamentos e segregação. Mas o que sai da nave surpreende a todos. O conto
traz uma pérola do estilo Bradbury: "Caiu o silêncio dos silêncios. Um
silêncio que se podia agarrar com a mão, um silêncio que descia sobre a multidão
como a pressão de uma tempestade distante".
“O foguetista’ é o conto que
melhor expressa a característica de Bradbury de prosa saudosista e intimista.
Na história, um garoto vive uma eterna tensão a respeito do pai, que pilota um
foguete e, a cada viagem, pode não voltar para casa.
O filho e a mãe antecipam o
final trágico e tentam aproveitar ao máximo o tempo com o ente querido enquanto
o pai tenta resistir a tentação de voltar ao espaço, uma situação exemplificada
no trecho: "Lembro me de meu pai naquela tarde, cavando sem cessar no
jardim, como um animal em busca de alguma coisa...". A narrativa por si só
já valeria a leitura, mas o autor ainda introduz um final surpresa.
Bradbury discute até mesmo
teologia, nos tocantes “O homem” e “Os balões ígneos”. O primeiro trata de um
comandante que procura um ser iluminado, mas sempre chega a um planeta depois
que ele já partiu. Em “Os balões ígneos”, padres vão a Marte livrar os marcianos do
pecado. Mas o que encontram lá é surpreendente e os muda para sempre.
“Os expatriados’ é uma
homenagem de Bradbury aos autores que fizeram parte de sua formação: Poe,
Dickens, Shakespeare, bran Stocker, Lovecraft... Na história, os livros desses
autores foram proibidos na Terra e os autores se refugiaram em Marte. Mas a
medida em que o último livro de um autor é queimado, ele desaparece. Um tema
recorrente que seria retomado com mais profundidade em Fahrenheit 451
Num livro de contos geniais,
que revolucionaram o gênero, é difícil escolher o melhor, mas certamente “A
raposa e a floresta” entraria em qualquer lista.
Na história, corre o ano de
2155 e a realidade é uma distopia militarista em guerra eterna. Quando uma
empresa resolve ofertar viagens ao passado como forma de entretenimento, um
casal de cientistas resolve aproveitar a oportunidade para escapar. Mas eles
sabem que serão perseguidos e, se pegos, tortura e morte é tudo que terão. A história
se passa na década de 30, no México, e é uma trama de suspense: eles
conseguirão despistar seus perseguidores? É surpreendente que Hollywood não
tenha aproveitado essa premissa. Poderia dar um ótimo filme.
Outro conto impressionante é
“O visitante”. Uma doença incurável chamada ferrugem sangrenta surge e todos
que são acometidos por ela são enviados para Marte, como as antigas colônias de
leprosos e ficam lá até morrer. Tudo muda quando surge um doente com uma
capacidade incrível: criar imagens mentais tão realistas que os doentes
conseguem se reimaginar na Terra. Mas essa paraíso se torna um inferno quando
os doentes começam a disputar o visitante. O conto ganha muito com a capacidade
de Bradbury de criar imagens mentais com seu texto poético: ”Nova York levantou
se em torno deles, das pedras, das cavernas, do céu. O sol brilhou nas altas
torres. O trem elevado passou como um trovão; rebocadores apitaram no porto. A mulher
verde fitou a baía, com uma tocha nas mãos".
São contos e mais contos tão
preciosos como pérolas no mar até o seu final curto, mas surpreendente.
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