O seriado de Sandman me fez ter curiosidade de reler o número
seis da revista antes do episódio equivalente. Da saga Prelúdio e Noturnos essa
foi a história que mais me impactou e teve maior influência sobre meus roteiros
de terror.
A releitura tinha um motivo: descobrir se, trinta anos
depois, a história ainda tinha o mesmo impacto.
Os números anteriores tinham me chamado atenção lá no início
da década de 90 pelo texto competente, puxando para o poético. Mas não era nada
muito diferente de outras coisas que eu já tinha lido, incluindo mesmo outros títulos
de terror da DC e principalmente as histórias da Kripta, que republicava
material da Warren. A primeira saga era, de certa forma até previsível do ponto
de vista de roteiro, com um MacGuffin muito claro. Sandman é aprisionado, perde
suas ferramentas e precisava recuperá-las.
A história é focada na garçonete-escritora.
Esse número específico trata do destino da última ferramenta:
o rubi, então de posse do transtornado John Dee. Ele está em uma lanchonete 24
horas, mas não o vemos logo.
Na verdade, toda a narrativa é focada em Bette, a garçonete. Embora
seja uma garçonete, Bette na verdade se considera uma escritora e a lanchonete
um local para recolher histórias. Ela descobriu o segredo dos contos: saber
quando terminar. Se você se estender demais, eles inevitavelmente terminam em
morte e tragédia. Assim, seus contos sempre têm finais felizes. Mesmo para os
clientes que estão ali, naquele momento, ela imagina histórias com finais
felizes.
A história tem referência até a suicídio.
Mas John Dee irá providenciar para esse conto não tenha um
final feliz.
Numa mistura de Além da Imaginação com Buñuel, o episódio
todo se passa dentro da lanchonete da qual os clientes jamais conseguem sair.
A impressão que tive ao ler a primeira vez – e se tornou
ainda mais patente nessa releitura – é de que Gaiman era alguém disposto a
testar limites. Ele queria saber até onde poderia ir numa revista de linha da
DC. Para começar, ele coloca uma personagem declaradamente lésbica, uma
novidade nos comics à época. Mas o limite que seria realmente ultrapassado
dizia respeito ao terror.
Ninguém consegue sair da lanchonete.
E a lista é grande. Uma das mulheres presentes na lanchonete
admite que fez sexo com um cadáver e gostou tanto que pedia para o marido não
se mexer durante o sexo. Outra personagem prega a mão de um cliente no balcão, dois
homens lutam até que um deles morra. Uma moça fura os olhos.
A palavra que me vinha à cabeça enquanto lia era: “Visceral”.
Aquela era uma história visceral, tanto do ponto de vista visual quanto do
ponto de vista pisicológico, com os personagens desnudados em seus mais íntimos
segredos, como se sua psiquê tivesse sido exposta da mesma forma que as vísceras.
Trinta anos depois, a mesma palavra me veio à cabeça:
visceral. O impacto ainda é grande e surpreendente ler isso numa revista de
linha publicada há três décadas. Era – e ainda é – uma história perturbadora.
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