terça-feira, janeiro 31, 2023
Monstro do Pântano: o terror que revolucionou os quadrinhos
Bastardos inglórios
O erotismo poético de Nelson Padrella
Quando comecei a escrever quadrinhos eróticos, ali pelo ano de 1992, eu não queria repetir os chavões de histórias desse tipo, que geralmente se limitavam a monossílabos, interjeições, onomatopeias e palavrões.
Então, minha grande inspiração foi o grande escritor curitibano Nelson Padrella, em especial uma história chamada “Lembrança”. Padrella era um dos principais roteiristas da editora Grafipar e nessa história em específico conseguiu com perfeição o tom poético que eu queria para meu texto.
Há uma curiosidade sobre essa história. Ao assinar a história, o desenhista Rodval Matias colocou o ano de 1986. Acontece que a Grafipar terminou em 1983. Nem o próprio Padrella consegiu explicar essa incoerência. É possível que o desenhista tivesse recebido esse roteiro na época da Grafipar, mas só o desenhou três anos depois do fim da editora. De fato, eu li essa história numa revista da Nova Sampa.
A HQ fala de um encontro de dois adolescentes num dia de chuva.
O rapaz está passando, todo molhado pelo portão de uma casa, quando a moça o chama. O tom é não só poético, mas saudosista, como se alguém mais velho estivesse se recordando de um passado longíncuo e idílico: “Era setembro ou outubro, não me lembro bem. Só lembro que depois de tanto tempo passei pelo portão da sua casa e você estava lá... e sem dizer palavras convidou-me com um gesto meigo. Não resisti e disse sim com os olhos. Saímos da chuva para dentro da sua casa que rescendia a aromas raros... cheiro de cravo e açúcares, algo de baunilha e infância...”.
O texto aqui é sutil e cheio de insinuações. Ela faz um “gesto meigo” e ele “diz sim com os olhos”. Os aromas da casa remetem ao café que ela está preparando, mas também são simbólicos: o cravo insinua sexualidade e afrodisíaco (vale lembrar que um pouco antes fizera sucesso uma novela chamada Gabriela cravo e canela, que se destacava exatamente pela protagonista sensual interpretada por Sônia Braga). A baunilha, como o próprio texto diz, representa infância, ingenuidade, dando a entender que essa teria sido a primeira relação sexual do garoto.
Na página seguinte, uma revelação: “Estava me lembrando por causa da chuva, que cai igualzinho àquele dia”. E percebemos que a chuva ganha também significados inesperados: ela desperta no narrador a lembrança dessa primeira experiência sexual e de seu primeiro amor.
Uma outra curiosidade sobre essa história: na época em que foi desenhada o mercado já pedia histórias explícitas, de forma que o desenho de Rodval mostra explicitamente toda a relação sexual, em absoluto contraste com o texto intimista de Padrella. Mas mesmo assim, Rodval acerta ao fazer os dois protagonistas com um ar de adolescentes, mantendo, visualmente, a ingenuidade e saudosismo da trama.
Livro O roteiro nas histórias em quadrinhos
Neste livro sobre roteiro para HQ, o neófito pode encontrar todas as dicas para se tornar um roteirista de qualidade. Escrever quadrinhos, ao contrário do que muitos pensam, exige esforço, dedicação e preserverança. Exige também muita leitura. O primeiro passo é ler este livro.
Valor: 25 reais (frente incluso). Pedidos: profivancarlo@gmail.com.
Margem Negra: o terror pesado demais para ser publicado
Eram histórias pesadas demais, viscerais demais, até mesmo para uma revista de terror. O compadre caprichava no sangue e nas vísceras e eu caprichava nos detalhes psicológicos. Traumas, necrofilia, personagens perturbados, loucos, tudo se juntava em nossas HQs. A frase que mais ouvi de fãs da dupla foi: "Eu passei noites sem dormir por causa de vocês!".
E, quem diria, 30 anos depois, nossas HQs continuam sendo perturbadoras e continuam incomodando. Recentemente uma editora se interessou em publicar dois álbuns com a seleção completa. Chegaram a colocar na divulgação de lançamentos e da noite de autógrafos. Mas quando eu enviei as HQs, o editor as leu, simplesmente desistiu, aparentemente por razões religiosas.
Mas, como acontecia com um chevette que tive, quando se fecha uma porta, abre-se um porta-malas. Uma editora já está preparando o álbum e ele sairá ainda este semestre.
Em breve, poderemos provocar insônia em uma nova geração de leitores!
X-men – O surgimento da Fênix
Mesmo antes da entrada de John Byrne no título, os X-men já
estava se revelando um dos gibis mais quentes do mercado americano. E um dos
pontos de virada foi a saga que levou ao surgimento da Fênix, que começa em
Uncanny X-men 98 e termina no número 101.
A trama começa com um clima natalino: “Natal em Nova York.
Tempo de magia, luzes e cores... as canções na igreja de são Patrick se
espalham pela 5ª avenida. A multidão caminha pelas ruas num clima de harmonia e
paz”. E, no meio da multidão, os X-men.
A história comça com clima natalino...
Mas esse clima de paz é quebrado pelo surgimento dos
Sentinelas. Eles estão sendo controlados pelo fanático Dr. Steven Lang, cujo
objetivo é exterminar a raça mutante. Os robôs sequestram Jean Grey, Wolverine
e Banshee e os leva para uma estação espacial ambonada da Shield. Os outros
X-men pegam uma nave espacial e vão até o local tentar resgatar os colegas.
... mas logo explode na mais pura ação.
Claremont conseguia fazer uma história simples, sem muitas
firulas ou complicações, mas ao mesmo tempo eficiente e repleta de ação. Como
acréscimo, trazia uma ótima caracterização dos personagens, a exemplo do
momento em que a nave espacial está decolando. O pensamento de cada personagem
reflete sua personalidade e sua história de vida. Cíclope pensa na amada: “Jean
e eu passamos por tantas coisas. Meu Deus, eu não posso perdê-la!”. Colossus,
que perdeu um irmão num acidente com uma nave espacial, pensa: “O poder de
Colossus não significa nada aqui!”. Já o aventureiro Noturno, percebe a aflição
do amigo: “Pobre Colossus! Ele está apavorado... nem percebe o quanto essa
aventura é excitante!”.
Essa saga gerou uma das capas mais antológicas de todos os tempos.
Em meio a toda essa trama, que inclui uma luta titânica entre
os novos X-men e os X-men clássicos (que deu origem a uma das capas mais
célebres de todos os tempos), há uma tempestade solar se aproximando. Para
pior, a nave que levou os X-men está avariada e apenas Jean Grey pode
manobra-la de volta para a Terra, mas para isso ela precisa estar exposta aos
bombardeio de radiação.
Momento dramático: Jean Grey é a única que pode pilotar a nave de volta para a nave em meio a uma tempestade solar.
A imagem que abre a edição 101 representa bem a situação
dramática vivida pela personagem. Dave Cockrum faz uma splash page com Jean
Grey parecendo gritar, seus cabelos vermelhos esvoaçantes se espalhando pelo
quadro, e a nave despencando. O texto de
Claremont diz: “Bem-vindos aos últimos momentos da vida de uma jovem mulher.
Seu nome é Jean Grey.”.
Claro que Jean não morreria. Na verdade, ela ressurgiria da
morte na figura da Fênix, o pássaro mitoloógico que morre queimado e renasce
das cinzas.
Stan Lee e Jack Kirby fazem uma participação especial na história. |
Uma curiosidade sobre essa saga é que os autores introduziram
uma homenagem aos criadores dos X-men. Jack Kirby e Stan Lee aparecem logo na
primeira história, criticando o comportamento de Jean Grey e Scott, que se
beijam em plena rua. “Ei, Stan, viu isso?”, diz Lee. “É, Stan, os jovens de
hoje já não têm mais respeito!”.
segunda-feira, janeiro 30, 2023
Entenda por que os comentários estão sendo moderados
- Gian, entrei no seu blog e tentei comentar numa matéria, mas não ele não foi publicado imediatamente
- Infelizmente eu tive que acionar a moderação de comentários.
- Caramba, são dezenas de comentários iguais o cara já começa te chamando de stalinista!
Contos Zen - A moça da beira do rio
Dois monges, um mais velho e outro jovem estavam andando pela floresta quando encontraram uma moça aflita. Ela pretendia atravessar um rio, mas não queria se molhar. O monge mais jovem a pegou nos braços, atravessou com ela e a colocou na outra margem do rio. depois voltou para o caminho.
Passado algum tempo, o monge mais velho começou:
- Você não deveria ter feito isso. Você é um monge e monges não devem tocar em mulheres.
O monge jovem continuava caminhando, em silêncio.
Passado algum tempo, o mais velho voltou à carga:
- O que você fez foi muito errado. Você não deveria ter pegado a moça em seu colo.
O monge jovem continuou andando, em silêncio.
Passado alguns minutos, o mais velho voltou ao assunto:
- Olha, você sabe que é monge e não deveria ter pegado a moça em seu colo...
Foi quando o mais jovem cortou-o:
- Eu deixei a moça na margem do rio. Você está carregando ela até agora?
Essa famosa história zen diz muito sobre um dos maiores problemas das pessoas – e frequente fonte de sofrimento: constantemente estamos carregando coisas conosco. Quase nunca estamos no presente. Estamos carregando frustações, acontecimentos passados, experiências decepcionantes. Muitas vezes, como no caso acima, não é sequer algo que aconteceu conosco. Algumas pessoas não conseguem nem mesmo dormir, rememorando algo que já aconteceu, que já passou, mas que continuam carregando em suas mentes.
A meditação zazen ajuda exatamente nisso, em focar no momento presente, no aqui agora, colaborando para nos libertar dos sofrimentos do passado e da ansiedade pelo futuro.
Kull, o conquistador
Livro Jornalismo em Quadrinhos
Valor: 25 reais (frete incluso)
Pedidos: profivancarlo@gmail.com
O dia em que a terra parou
A banca do Zé, um dos últimos sebos de rua de Belém
Eu frequento esse sebo desde 1986. Quando mudei para Macapá, demorava uns seis meses ou mais para ir. Em uma dessas vezes ele me pediu para voltar no dia seguinte porque tinha reservado algumas coisas para mim. Voltei e me surpreendi: ele tinha guardado um saco de estopa cheio de graphic novels, cada uma cinco reais. Eu só não levei o que já tinha. Agora em janeiro voltei lá e ele tinha guardado coisas para mim. Quando fui ver, eram verdadeiras preciosidades dos quadrinhos."Eu guardo para quem eu sei que vai valorizar e conservar esses quadrinhos", me disse ele.
Enquanto estava lá, passou um casal, a esposa brasileira, o marido japonês. Quando saíram, o Zé me contou: o homem havia lutado na II Guerra Mundial e estava em Hiroshima quando caiu a bomba, mas nos campos, o que salvou sua vida. E ele comprava qualquer livro sobre o Japão na II Guerra, de modo que o Zé sempre reservava para ele qualquer livro que aparecesse lá sobre o assunto. O exemplo mostra bem o quanto ele conhece bem cada um de seus clientes.
Pouco tempo depois chegou um cliente querendo a Bíblia de estudos. Ele tirou de trás do balcão. "Esse é um dos livros mais roubados", explicou ele. "Então não deixo à mostra".
A simpatia e os clientes fixos fizeram com que a banca do Zé sobrevivesse em meio ao fechamento geral dos sebos de rua de Belém.
Para quem gosta de quadrinhos e literatura o sebo do Zé é parada obrigatória .
O sebo do Zé fica próximo do Mercado de São Brás, no cruzamento das ruas José Bonifácio com Faria Brito.
Dia do quadrinho nacional: 7 quadrinistas nacionais para conhecer
O livro dos cinco anéis
domingo, janeiro 29, 2023
Fundo do baú - Os herculóides
Revista polonesa Krakers
Sargento Rock – A rocha e a muralha
O sargento rock era sem dúvida o mais durão da companhia
moleza.
Mas um dia chegou um grandalhão que parecia colocar o
sargento no chinelo. Seu nome era Joe Muralha.
Como em todas as histórias escritas por Robert Kanigher, há
uma repetição de situações.
Muralha consegue destruir um tanque.
Logo que chega à Moleza, Joe Muralha debocha: “Então esseé o Rock?
Não me parece grande coisa”. Em seguida temos um quadro com um close do
sargento e o texto: “Se o sargento ouviu, ele não respondeu”.
Na sequência, a companhia Moleza é atacada por uma tropa
nazista protegida por um tanque. Joe Muralha sozinho avança na direção do
tanque e consegue inutilizá-lo com uma granada. Passado o episódio, Muralha
afirma: “Então esse é o Rock, hein? Não parece tão durão!”. E de novo um close
do sargento e o texto: “Mas se rock ouviu, ele não respondeu”.
Quem está acostumado com as histórias do personagem, sabe que
no final essa situação sofreria uma reviravolta. A história termina o soldado
Joe comentando: “Uma muralha pode cair... mas uma rocha não!”.
Essa história foi publicada na revista Our Army at War 83.
O pior show do mundo
sábado, janeiro 28, 2023
Caligari: a história de uma adaptação
O sucesso do filme Caligari fez com que ele fosse adaptado mais de uma vez para outras mídias. A obra já foi citada diversas vezes em gibis e ganhou uma adaptação em quadrinhos em 1992, pela editora Monster Comics, numa minissérie em três partes assinada por Ian Carney e Michael Hoffman. Em 1999, os roteiristas Randy e Jean-Marc Lofficer e o ilustrador Ted Mckeever juntaram elementos de Batman, Super-homem, Metrópolis e Caligari no especial Nosferatu. Quando Tim Burton lançou o segundo filme do Batman, em 1992, o visual do Pinguim era inspirado em Caligari, visual que depois foi aproveitado no desenhado animado dirigido por Bruce Tim.
Curiosamente, embora os quadrinhos de terror sempre tenham feito muito sucesso no Brasil, em nosso país nunca o filme de Wiene havia sido adaptado para a nona arte.
A idéia para isso surgiu em 1998. Nessa época estava sendo lançada a graphic novel Manticore, em duas partes, com roteiro meu, pela editora Monalisa. O sucesso de crítica (a revista ganhou o HQ Mix, o Angelo Agostini de melhor roteirista e o prêmio da Associação Brasileira de Arte Fantástica) fez crer que a revista teria uma continuidade. A idéia, então, era transformar a Manticore numa revista mix de terror e ficção-científica nos moldes da extinta Kripta. Uma das ideias era fazer histórias sobre mitos urbanos, como O bebê diabo e sobre clássicos de terror, como Caligari.
Uma série de decisões editoriais equivocadas fez com que a revista, apesar do sucesso, não tivesse continuidade, mas algumas dessas histórias seriam de fato produzidas. As duas citadas acima foram lançadas em 2008 pela editora HQM no especial Quadrinhofilia, que reúne trabalhos de José Aguiar.
O processo de adaptação começou com uma análise do filme. Eu e o desenhista assistimos ao Gabinete do Dr. Caligari juntos, fazendo anotações. A ideia era captar as principais características da história, afinal, o segredo de uma adaptação não é ser totalmente fiel à trama, mas ser fiel ao espírito da ideia original. Assim, a deformação dos cenários e a maquiagem exagerada foram os elementos mais facilmente percebidos. Como havia uma limitação de seis páginas, a história precisava ser condensada, mas ainda assim fazer sentido e ser fiel.
Uma das questões discutidas foi com relação ao uso de diálogos e legendas. Como o filme é mudo, o caminho mais fácil seria fazer uma HQ muda. Mas cinema e quadrinhos são mídias completamente diferentes e fazer isso seria um erro. Mesmo em seus primórdios, as HQs não eram mudas, pois não havia limitação técnica ao uso da linguagem falada. Assim, decidiu-se que se teria diálogos e legendas (representando a fala de Alan, em off).
O passo seguinte, após a estruturação de um argumento-sinopse, foi a elaboração de um roteiro. O roteiro das duas primeiras páginas é apresentado abaixo, para dar uma ideia dessa fase da adaptação:
Página 1Q1 – Plano detalhe de folhas secas caídas no chão.
Velho (off): Os espíritos... eles estão em todos os lugares...
Q2 – Plano médio. Francis e o velho estão sentados, lado a lado, conversando.
Velho: Nos amedrontam... eles me afastaram de minha mulher e meus filhos.
Q3 – Os dois estão conversando, mas agora Francis olha para o lado, para Jane, que aparece vestida de branca, quase como um espírito.
Velho: Foi assim que aconteceu, meu rapaz...
Q4 – Jane passa pelos dois, sem notá-los. Quadro mudo.
Q5 – Quadro horizontal. Créditos. Francis e o velho em primeiro plano, vistos de costas, enquanto Jane afasta-se, em último plano.
Velho: Conhece a jovem?
Francis: Aquela é minha noiva, Jane.
Q6 – Alan e o velho conversando, em plano médio.
Francis: A pobre jamais se recuperou do que nos aconteceu...
Q7 – Agora um plano fechado dos dois, conversando. Francis, agora em segundo plano, sendo observado, com olhar perdido, pelo velho.
Francis: Também tenho uma história...
Q8 – plano fechado de Francis, em gesto amplo, expressionista.
Francis: ... ainda mais extraordinária do que a sua...
Q9 – Close de Francis. Destaque para seu olhar melancólico, ampliado pela “maquiagem pesada”.
Francis: Tudo começou com a chegada da feira de variedades à nossa cidade.
Página 2 Nesta página teremos um quadro grande, o 4, ocupando boa parte da página, num tom expressionista.
Q1 – Quadro geral da feira, com Caligari aproximando-se do leitor.
Texto: E com a feira
Q2 – A continuação da mesma cena, mas agora Caligari já está mais próximo de nós.
Texto: veio
Q3 – Agora o quadro é tomado por Caligari.
Texto: O doutor Caligari.
Q4 – Chegamos ao quadro de impacto da página. Caligari espera o escrivão. Como combinamos, a mesa do escrivão é extraordinariamente alta e distorcida, simbolizando, como no filme, o monstro da burocracia. Caligari é visto como pequenino diante desse monstro.
Texto: Antes de instalar sua feira, o doutor foi pedir permissão ao escrivão. Ele foi duramente humilhado. Teve que esperar por horas para ser atendido.
O exemplo serve para demonstrar como foi o processo de adaptação nessa fase de estruturação do roteiro. Bom lembrar que tal roteiro foi construído a partir das conversas entre desenhista e escritor, e reflete essa conversa. Posto isso, passemos a analisar o texto.
A fala de Francis, quebrada, nos três primeiros quadros da página 2, revela influência do quadrinho britânico do final dos anos 1980, em especial de autores como Neil Gaiman (Orquídea Negra) e Alan Moore (Monstro do Pântano).
A narrativa, em off, é intencionalmente coerente e racional, como forma de evitar que o leitor perceba que se trata de um conto de um louco, o que já é evidenciado pelo desenho, sendo uma pista de como a trama irá terminar. Assim, o roteiro procurou preservar o final surpresa.
Se o texto parece uma narrativa fantástica contada por um homem racional, o desenho distorce essa narrativa, demonstrando o real estado das coisas.
A segunda página, já descrita no roteiro acima, apresenta o quadro de impacto de Caligari pequeno, numa perspectiva distorcida, diante da enormidade da burocracia.
A página 3 é dominada pela figura esguia de Cesare. A magreza e altura atípica do personagem orientam a leitura, que ganha foco no rosto fantasmagórico do sonâmbulo. Os personagens normais são eclipsados por essa figura distorcida.
A página 4 é centralizada pela figura de Jane, como se os fatos refletissem dela. Ao fitar a página, o leitor tem seu olhar magnetizado pelo olhar assustado de Jane e sua figura, em sépia azul. A tendência do olhar é correr na direção do último quadro, em que Cesare agarra Jane, sequestrando-a.
Esse caos da diagramação reflete o caos interno dos personagens, suas angústias e inquietações, no que poderia ser considerado um equivalente quadrinístico da técnica expressionista.
Avançando, na página 6 temos a prisão de Caligari. Ele se contorce e grita, lutando com os médicos. Vista em oposição à página seguinte, vemos que ela se reflete no quadro 4 da página 7. Ali é o narrador que é preso e repete a mesma posição de Caligari, como se fossem duas faces da mesma moeda: num lado a racionalidade, no outro a loucura. Como o lado racional é na verdade uma narrativa distorcida, uma falsa racionalidade, esse contraste cria uma inquietação no leitor que nos lembra o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, que pretende renovar nossa percepção e nosso modo de compreender as coisas.
Na página 7 há um diálogo, não existente no filme, que pretende destacar exatamente a crítica ideológica do filme, pensada originalmente pelos roteiristas (Janowitz e Carl Mayer). Alan pula sobre Caligari e grita: “Tolos! Não percebem? Ele planeja nosso destino!”.
A fala é uma referência direta à interpretação de Kracauer, segundo o qual Caligari antecipa Hitler e o nazismo. Assim, se por um lado respeitamos a moldura introduzida por Fritz Lang, por outro destacamos a crítica social e política imaginada pelos roteiristas.