terça-feira, janeiro 31, 2023

Monstro do Pântano: o terror que revolucionou os quadrinhos

 


No início da década de 1980 o terror já era um gênero decadente no mercado de quadrinhos dos EUA. Depois do auge das revistas do gênero na década de 1970, os gibis do gênero vendiam cada vez menos. Seria uma revista da DC Comics, contando com textos do gênio Alan Moore que levaria os quadrinhos de horror a um novo patamar, provocando inclusive a criação de um selo voltado apenas para leitores adultos, a Vertigo.
O personagem surgiu na revista House of Secrets 92, de abril de 1971, criação do roteirista Len Wein e do desenhista Berni Wrightson. Contava a história vitoriana de um homem, Alex Olsen, casado com uma linda mulher, cujos experimentos científicos são sabotados por um colega, que se apaixonou por sua esposa. Os produtos químicos, em junção com as plantas do pântano, fazem com que ele se transforme num monstro. Ele volta para se vingar, mas descobre que não poderá mais voltar a ser humano e foge para o pântano, sob o olhar apavorado de sua esposa. Wrightson  desenhou tudo em uma semana, usando fotos de amigos para compor os personagens.Era uma história fechada, mas fez tanto sucesso que surgiu a ideia de criar um gibi com o personagem.
O personagem foi atualizado e alguns nomes mudados. Alex Olsen virou Alec Holand. Sua esposa tornou-se Linda Holand. Na nova versão, o casal de cientista está pesquisando uma fórmula restauradora capaz de acelerar o crescimento das plantas, o que poderia acabar com a fome do mundo. Mas a experiência é sabotada, Linda morre e Alec se transforma em um monstro sempre em busca de recuperar a sua humanidade perdida.
A revista foi sucesso por algum tempo e lançou personagens importantes, como o vilão Anton Arcane e sua sobrinha Abe, mas logo a fórmula se saturou e as vendas caíram. Alguns anos depois, uma nova equipe criativa, composta pelo roteirista Marty Pasko e o desenhista Tom Yeats assumiu o gibi, sem sucesso. A revista já estava para ser cancelada quando o editor, Len Wein, resolveu chamar um novo talento inglês, Alan Moore, para assumir o roteiro.
Alan Moore não só conseguiu revitalizar o personagem como o transformou em um dos maiores sucessos de público e de crítica, influenciando absolutamente a forma como os leitores viam os quadrinhos de terror.
Para começar, Moore fez a mudança significativa no personagem. O mote procura da humanidade foi abandonado quando o Monstro descobriu que não era Alec Holand, mas um elemental que se apropriara das memórias do cientista. Com isso, as possibilidades se ampliaram muito, permitindo que o personagem pudesse viajar para qualquer lugar do planeta apenas deixando sua casca morre em um ponto e renascendo em outro.
Além disso, Moore incorporou à série um discurso ecológico e libertário, denunciando a destruição da natureza e a cobiça dos governos e grandes corporações. O auge da inovação foi quando o Monstro do Pântano e Abe fizeram amor graças a uma raiz alucinógena. Essa HQ foi a causa do personagem ter parado de ser publicado no Brasil, já que os diretores da Abril, na época a acharam indecente, embora não houvesse, de fato, cenas de sexo.
A revista tinha também desenhos detalhistas e apavorantes de Stepehn Bissete e John Totleben, que posteriormente seriam substituídos por Rich Veitch e Alfredo Alcala.
Mas a grande atração da revista era, sem dúvida, o texto de Moore, que flertava com a poesia e a filosofia. Moore chegou a afirmar que a revista era o seu jeito de devolver a poesia às pessoas. Até Moore, a maioria dos roteiristas usava o texto para apenas ajudar a contar a história. Ele levou o texto a patamares muito mais amplos, usando recursos estilísticos totalmente inovadores. Além do texto poético, as histórias contavam com narrativas não lineares, com flash backs ou com a mesma situação contada por vários personagens. Parecia que a cada número o roteirista inglês experimentava uma nova maneira de contar uma história.
Como resultado, muita gente que tinha parado de ler quadrinhos voltou a eles. Moore conquistou para os gibis os leitores mais velhos e intelectualizados, que seriam a base do selo Vertigo.

Bastardos inglórios

 


Bastardos Inglórios é um filme de Quentim Tarantino, de 2009. Tarantino parece ter chegado à maturidade narrativa num filme que junta o que tem de melhor em toda a cinematografia e ainda acrescenta um fundo histórico interessante. Para quem não sabe, a história é sobre um grupo de soldados judeus-americanos (os bastardos do título), que entra na França ocupada pelos alemães com o objetivo de matar o máximo de nazistas possível. Em uma trama paralela, temos uma garota judia cuja família foi morta, que agora tem uma identidade francesa e administra um cinema que acaba sendo escolhido para o lançamento de um filme alemão ao qual irá comparecer toda a elite nazista. As duas tramas paralelas, claro, irão se juntar no final, quando a garota, por um lado, e os bastardos por outro, irão tentar matar os oficiais.

Tarantino faz flash back em cima de flash back, mas a sequência mais memorável do filme é a primeira, em que uma calma conversa de um fazendeiro francês com um oficial nazista termina em um banho de sangue. Nessa cena, duas coisas se destaca: a ótima direção de Tarantino (quando a câmera começa a se movimentar em círculo ao redor dos dois homens, sabemos que algo vai acontecer) e o talento do ator Christoph Waltz, que faz o Coronel da SS Hans Landa. O charme desse personagem é um dos atrativos do filme. Onde Hans Landa aparece, ele rouba a cena.

Já nos créditos percebemos que o filme é uma farsa, quando começa a tocar a música de Ennio Morricone, famoso pelos filmes de faroeste de Sérgio Leone. Muitos cineastas trabalharam muito bem com a trilha sonora, mas Tarantino a transformou em elemento narrativo.

Entre as várias cenas memoráveis está aquela em que Brad Pitt, com forte sotaque americano, tenta convencer Landa de que é um italiano. O cinema todo gargalhou.

O erotismo poético de Nelson Padrella

 

Quando comecei a escrever quadrinhos eróticos, ali pelo ano de 1992, eu não queria repetir os chavões de histórias desse tipo, que geralmente se limitavam a monossílabos, interjeições, onomatopeias e palavrões.

Então, minha grande inspiração foi o grande escritor curitibano Nelson Padrella, em especial uma história chamada “Lembrança”. Padrella era um dos principais roteiristas da editora Grafipar e nessa história em específico conseguiu com perfeição o tom poético que eu queria para meu texto.

Há uma curiosidade sobre essa história. Ao assinar a história, o desenhista Rodval Matias colocou o ano de 1986. Acontece que a Grafipar terminou em 1983. Nem o próprio Padrella consegiu explicar essa incoerência. É possível que o desenhista tivesse recebido esse roteiro na época da Grafipar, mas só o desenhou três anos depois do fim da editora. De fato, eu li essa história numa revista da Nova Sampa.

A HQ fala de um encontro de dois adolescentes num dia de chuva.

O rapaz está passando, todo molhado pelo portão de uma casa, quando a moça o chama. O tom é não só poético, mas saudosista, como se alguém mais velho estivesse se recordando de um passado longíncuo e idílico: “Era setembro ou outubro, não me lembro bem. Só lembro que depois de tanto tempo passei pelo portão da sua casa e você estava lá... e sem dizer palavras convidou-me com um gesto meigo. Não resisti e disse sim com os olhos. Saímos da chuva para dentro da sua casa que rescendia a aromas raros... cheiro de cravo e açúcares, algo de baunilha e infância...”.  

O texto aqui é sutil e cheio de insinuações. Ela faz um “gesto meigo” e ele “diz sim com os olhos”. Os aromas da casa remetem ao café que ela está preparando, mas também são simbólicos: o cravo insinua sexualidade e afrodisíaco (vale lembrar que um pouco antes fizera sucesso uma novela chamada Gabriela cravo e canela, que se destacava exatamente pela protagonista sensual interpretada por Sônia Braga). A baunilha, como o próprio texto diz, representa infância, ingenuidade, dando a entender que essa teria sido a primeira relação sexual do garoto.

Na página seguinte, uma revelação: “Estava me lembrando por causa da chuva, que cai igualzinho àquele dia”. E percebemos que a chuva ganha também significados inesperados: ela desperta no narrador a lembrança dessa primeira experiência sexual e de seu primeiro amor.

Uma outra curiosidade sobre essa história: na época em que foi desenhada o mercado já pedia histórias explícitas, de forma que o desenho de Rodval mostra explicitamente toda a relação sexual, em absoluto contraste com o texto intimista de Padrella. Mas mesmo assim, Rodval acerta ao fazer os dois protagonistas com um ar de adolescentes, mantendo, visualmente, a ingenuidade e saudosismo da trama.  

Livro O roteiro nas histórias em quadrinhos

 


 

Neste livro sobre roteiro para HQ, o neófito pode encontrar todas as dicas para se tornar um roteirista de qualidade. Escrever quadrinhos, ao contrário do que muitos pensam, exige esforço, dedicação e preserverança. Exige também muita leitura. O primeiro passo é ler este livro. 

Valor: 25 reais (frente incluso). Pedidos: profivancarlo@gmail.com. 

Margem Negra: o terror pesado demais para ser publicado

 

Quando eu e o compadre Bené Nascimento começamos a enviar nossas HQs para publicação, os editores de revistas como Calafrio e Mephisto gostavam, mas pensavam três vezes antes de publicar.
Eram histórias pesadas demais, viscerais demais, até mesmo para uma revista de terror. O compadre caprichava no sangue e nas vísceras e eu caprichava nos detalhes psicológicos. Traumas,  necrofilia, personagens perturbados, loucos, tudo se juntava em nossas HQs. A frase que mais ouvi de fãs da dupla foi: "Eu passei noites sem dormir por causa de vocês!".
E, quem diria, 30 anos depois, nossas HQs continuam sendo perturbadoras e continuam incomodando. Recentemente uma editora se interessou em publicar dois álbuns com a seleção completa. Chegaram a colocar na divulgação de lançamentos e da noite de autógrafos. Mas quando eu enviei as HQs, o editor as leu, simplesmente desistiu, aparentemente por razões religiosas.
Mas, como acontecia com um chevette que tive, quando se fecha uma porta, abre-se um porta-malas. Uma editora já está preparando o álbum e ele sairá ainda este semestre.
Em breve, poderemos provocar insônia em uma nova geração de leitores!

X-men – O surgimento da Fênix

 


Mesmo antes da entrada de John Byrne no título, os X-men já estava se revelando um dos gibis mais quentes do mercado americano. E um dos pontos de virada foi a saga que levou ao surgimento da Fênix, que começa em Uncanny X-men 98 e termina no número 101.

A trama começa com um clima natalino: “Natal em Nova York. Tempo de magia, luzes e cores... as canções na igreja de são Patrick se espalham pela 5ª avenida. A multidão caminha pelas ruas num clima de harmonia e paz”. E, no meio da multidão, os X-men.

A história comça com clima natalino... 


Mas esse clima de paz é quebrado pelo surgimento dos Sentinelas. Eles estão sendo controlados pelo fanático Dr. Steven Lang, cujo objetivo é exterminar a raça mutante. Os robôs sequestram Jean Grey, Wolverine e Banshee e os leva para uma estação espacial ambonada da Shield. Os outros X-men pegam uma nave espacial e vão até o local tentar resgatar os colegas.

... mas logo explode na mais pura ação. 


Claremont conseguia fazer uma história simples, sem muitas firulas ou complicações, mas ao mesmo tempo eficiente e repleta de ação. Como acréscimo, trazia uma ótima caracterização dos personagens, a exemplo do momento em que a nave espacial está decolando. O pensamento de cada personagem reflete sua personalidade e sua história de vida. Cíclope pensa na amada: “Jean e eu passamos por tantas coisas. Meu Deus, eu não posso perdê-la!”. Colossus, que perdeu um irmão num acidente com uma nave espacial, pensa: “O poder de Colossus não significa nada aqui!”. Já o aventureiro Noturno, percebe a aflição do amigo: “Pobre Colossus! Ele está apavorado... nem percebe o quanto essa aventura é excitante!”.

Essa saga gerou uma das capas mais antológicas de todos os tempos. 


Em meio a toda essa trama, que inclui uma luta titânica entre os novos X-men e os X-men clássicos (que deu origem a uma das capas mais célebres de todos os tempos), há uma tempestade solar se aproximando. Para pior, a nave que levou os X-men está avariada e apenas Jean Grey pode manobra-la de volta para a Terra, mas para isso ela precisa estar exposta aos bombardeio de radiação.

Momento dramático: Jean Grey é a única que pode pilotar a nave de volta para a nave em meio a uma tempestade solar. 



A imagem que abre a edição 101 representa bem a situação dramática vivida pela personagem. Dave Cockrum faz uma splash page com Jean Grey parecendo gritar, seus cabelos vermelhos esvoaçantes se espalhando pelo quadro, e a nave despencando.  O texto de Claremont diz: “Bem-vindos aos últimos momentos da vida de uma jovem mulher. Seu nome é Jean Grey.”.

Claro que Jean não morreria. Na verdade, ela ressurgiria da morte na figura da Fênix, o pássaro mitoloógico que morre queimado e renasce das cinzas.

Stan Lee e Jack Kirby fazem uma participação especial na história. 

Uma curiosidade sobre essa saga é que os autores introduziram uma homenagem aos criadores dos X-men. Jack Kirby e Stan Lee aparecem logo na primeira história, criticando o comportamento de Jean Grey e Scott, que se beijam em plena rua. “Ei, Stan, viu isso?”, diz Lee. “É, Stan, os jovens de hoje já não têm mais respeito!”.

segunda-feira, janeiro 30, 2023

Entenda por que os comentários estão sendo moderados

 


 - Gian, entrei no seu blog e tentei comentar numa matéria, mas não ele não foi publicado imediatamente 

- Infelizmente eu tive que acionar a moderação de comentários. 

- Mas por quê? 
- Olha o tipo de comentário que os bolsominions estavam postando. 



- Caramba, são dezenas de comentários iguais o cara já começa te chamando de stalinista! 

- Pois é, virei um "extremista de esquerda stalinista"! 
- Caramba! 
- É o culto à personalidade. Como eles consideram o Bolsonaro um semi-deus, qualquer um que não o idolatre é imediatamente chamado de comunsita, petista, stalinista, dentista, skatista, surfista, remista. E pode colocar na conta vários outros "comunistas": Jim Starlin vira marxismo cultural, Raul Seixas vira marxismo cultural, Alan Moore vira marxismo cultural. E, para eles, comunista precisa ser preso ou morto. Para eles a Globo é comunista, a Folha de São Paulo é comunista, o Estadão é comunista. Esse tipo de gente só se informa pelo zap zap e por canais bolsonaristas como o Terça-livre. Qualquer coisa fora disso é comunismo. 
- O cara está te chamando de lulo-petralha?!!!



- Pois é, eu que nunca votei no PT, que sempre critiquei o PT, que na época da faculdade vivia em pé de guerra com os petistas da turma, de repente virei petralha só porque me recuso a idolatrar o mito. 
- E você praticamente nem fala de política no seu blog. 
- Pois é. Mas a estratégia deles é Dart Vader: ou você idolatra o Capitão ou é comunista, stalinista, petista, skatista, surfista, dentista, remista. Teve um "amigo" bolsominions que ameaçou me dar um soco só porque eu disse que político é para ser cobrado não para ser idolatrado. Outro disse que o pior tipo de "comunistas" são os "isentões": isentão aí significa alguém que se recusa a idolatrar o mito deles, mas ao mesmo tempo não idolatra o Lula, que se recusa a tecer elogios à ditadura militar, mas também não elogia a Coréia do norte. Antigamente para ser comunista precisava ser fã do Karl Marx, precisava ler o Manifesto Comunista, precisava acreditar em ditadura do proletariado. Hoje em dia, para ser comunista, basta não idolatrar o mito.
- Ele te acusa de cometer um gesto lulo-petista. Que gesto lulo-petista é esse?
- Me recusar a idolatrar o mito. Para quem escreveu esse comentário, qualquer um que não idolatre o mito está cometendo um gesto lulo-petista. Ou seja, na cabeça dele, está cometendo um crime. São pessoas que só se informam pelo zap zap e por vídeos de teoria da conspiração.
- Caramba, estou lendo aqui. O cara está ameaçando te denuncia... Te denunciar para quem? 
- Para os militres, provavelmente. 




- Estou vendo aqui. Ele te acusa de doutrinar os alunos. Fui seu aluno e você nunca falou de política em sala de aula. 
- Deve ser porque uso camisas da Marvel em sala de aula. Dizem que estou doutrinando os alunos a gostarem da Marvel. Nisso, confesso, sou culpado. Mas em minha defesa posso dizer que gosto da DC quando ela é desenhada pelo Garcia-Lopez.... rsrs... 
- Nossa, o cara diz que vai fazer você perder o emprego! Chega até a te chamar de estelionatário! 
- Só faltou dizer que vai me prender e  torturar pessoalmente para que eu confesse todos os meues crimes...kkkk Tudo isso porque eu me recuso a idolatrar o Capitão. E é esse pessoal que diz que é a favor da liberdade. A liberdade que eles querem é a liberdade de poder denunciar e prender quem pensa diferente deles. E como você pode ver, postaram essas ameaças dezenas de vezes no blog antes que eu bloqueasse os comentários. É por isso que não é mais possível comentar no meu blog. Infelizmente, tive que bloquear essa possibilidade de contato com meus leitores por causa desse tipo de comentário ameaçador.   
- Assustador, melhor manter os comentários do blog moderados mesmo.  
- Pois é. Melhor do que dar voz a gente desse naipe, que só se informa pelo zap zap e acredita em todas as teorias da conspiração possíveis. 

Contos Zen - A moça da beira do rio

 


Dois monges, um mais velho e outro jovem estavam andando pela floresta quando encontraram uma moça aflita. Ela pretendia atravessar um rio, mas não queria se molhar. O monge mais jovem a pegou nos braços, atravessou com ela e a colocou na outra margem do rio. depois voltou para o caminho.

Passado algum tempo, o monge mais velho começou:

- Você não deveria ter feito isso. Você é um monge e monges não devem tocar em mulheres.

O monge jovem continuava caminhando, em silêncio.

Passado algum tempo, o mais velho voltou à carga:

- O que você fez foi muito errado. Você não deveria ter pegado a moça em seu colo.

O monge jovem continuou andando, em silêncio.

Passado alguns minutos, o mais velho voltou ao assunto:

- Olha, você sabe que é monge e não deveria ter pegado a moça em seu colo...

Foi quando o mais jovem cortou-o:

- Eu deixei a moça na margem do rio. Você está carregando ela até agora?

Essa famosa história zen diz muito sobre um dos maiores problemas das pessoas – e frequente fonte de sofrimento: constantemente estamos carregando coisas conosco. Quase nunca estamos no presente. Estamos carregando frustações, acontecimentos passados, experiências decepcionantes. Muitas vezes, como no caso acima, não é sequer algo que aconteceu conosco. Algumas pessoas não conseguem nem mesmo dormir, rememorando algo que já aconteceu, que já passou, mas que continuam carregando em suas mentes.

A meditação zazen ajuda exatamente nisso, em focar no momento presente, no aqui agora, colaborando para nos libertar dos sofrimentos do passado e da ansiedade pelo futuro.

Kull, o conquistador

 

 

O rei Kull, criação de Robert E. Howard, o mesmo de Conan é um daqueles exemplos de um nome que parece bom no país de origem, mas tem um péssimo significado em outros locais. As piadas com ele, na década de 1980, eram inúmeras, a mais óbvia delas: “Esse rei é um kull!”.
O personagem, no entanto, tinha ótimas história e uma equipe de estrelas. Os roteiro eram de Gerry Conway (o roteirista que Roy Thomas queria originalmente para Conan) e os desenhos dos irmãos John e Mary Severin. John tinha sido um dos melhores desenhistas da EC Comics e seu traço é muito conhecido aqui pelas histórias publicadas na revista Kripta. O trabalho dos irmãos não era tão detalhado nas histórias de Kull (até porque as HQs iam receber cor), mas mesmo assim impressionavam pela qualidade. Já Conway conseguia definir bem o personagem, diferenciando-o de Conan em histórias repletas de intrigas palacianas, monstros e magia (incrível como havia monstros naquela época!).
Um bom exemplo do entrosamento desse trio é a história “Um reino em alto-mar”, publicada no quinto número da revista Kull The Conqueror e no número 23 de Superaventuras Marvel.
A arte dos irmãos Severin era um dos destaques do título. 


Na história, um embaixador de uma ilha distante procura Kull para pedir ajuda numa guerra com os vizinhos de outra ilha. Ao chegar ao local, os valusianos descobrem que ali havia apenas uma ilha que, dividida, deu origem a dois povos inimigos. Por tras disso, claro, há tramas e subtramas e muita traição.
Conway consegue desenvolver bem a HQ, contando uma história longa, repleta de informações, em poucas páginas.   

Livro Jornalismo em Quadrinhos

 

Em Jornalismo em Quadrinhos, Gian Danton não apenas traça um histórico dessa área, mas também analisa as principais obras publicadas no Brasil e no mundo. Além do conteúdo servir como uma generosa introdução ao tema, o autor ainda traz os bastidores de diversas produções de Jornalismo em Quadrinhos feitas por ele mesmo.

Valor: 25 reais (frete incluso)

Pedidos: profivancarlo@gmail.com 

O dia em que a terra parou

 

A origem do filme O dia em que a terra parou é o conto “Adeus ao mestre, de Harry Bates, publicado em 1940. No conto, um embaixador extraterrestre é morto e um momento é erigido em sua homenagem ao redor da nave, que não pode ser aberta e, na frente dela, o robô, que não se mexe, e, aparentemente, está inativo. Mas um fotógrafo desconfia que algo está acontecendo e resolve passar a noite próximo ao robô (e acaba se surpreendendo com o que acontece).
Robert Wise pegou essa premissa e transformou num dos filmes mais importantes da ficção científica de todos os tempos. Ao contrário do conto (em que a história do embaixador Klaatu é narrada em flash back), o diretor preferiu trabalhar com uma narrativa linear, o que não tirou da história seu impacto revolucionário, mas de certa forma, ampliou-a.
Muito mais do que um filme de ação, O dia em que a terra parou é um filme filosófico, que reflete sobre a humanidade e a bondade.
Na história, o embaixador traz uma mensagem de paz, mas um aviso: se continuarem se tornando uma ameaça aos outros planetas, a Terra deverá ser exterminada. Mas a chegada da nave é vista pelo governo americano como uma ameaça. Klaatu é alvejado e foge, indo parar em uma pensão, onde conhece uma viúva e seu filho, que o ajudam a encontrar um grande cientista, que poderia ajuda-lo em sua missão de convencer os governos terrestres a cessarem a corrida armamentística.
O filme, lançado em 1951, estreou em plena Guerra Fria, período em que Rússia e EUA disputavam o controle mundial num frágil equilíbrio, que colocou a humanidade diversas vezes próxima do armagedrom (chegou a existir até mesmo um relógio do fim do mundo, criado por cientistas, que mostrava o quanto estávamos próximos do fim – representado pela meia-noite). Tornou-se um símbolo do apelo pela paz e um dos mais pungentes apelos contra a insensatez humana.

A banca do Zé, um dos últimos sebos de rua de Belém

 

Durante décadas Belém teve uma tradição de sebos de rua. No auge dos quadrinhos em formatinho da Abril, era fácil encontrar centenas desses gibis empilhados em sebos. Um dos que mais se destacavam era o sebo do Zé, perto do mercado do São Brás. O destaque não eram só os preços módicos e o material de qualidade, mas principalmente a simpatia do Zé, um dos melhores vendedores que já conheci. O Zé conhece cada um de seus clientes, o que cada um gosta, o que lê, o que compra.
Eu frequento esse sebo desde 1986. Quando mudei para Macapá, demorava uns seis meses ou mais para ir. Em uma dessas vezes ele me pediu para voltar no dia seguinte porque tinha reservado algumas coisas para mim. Voltei e me surpreendi: ele tinha guardado um saco de estopa cheio de graphic novels, cada uma cinco reais. Eu só não levei o que já tinha. Agora em janeiro voltei lá e ele tinha guardado coisas para mim. Quando fui ver, eram verdadeiras preciosidades dos quadrinhos."Eu guardo para quem eu sei que vai valorizar e conservar esses quadrinhos", me disse ele.

Enquanto estava lá, passou um casal, a esposa brasileira, o marido japonês. Quando saíram, o Zé me contou: o homem havia lutado na II Guerra Mundial e estava em Hiroshima quando caiu a bomba, mas nos campos, o que salvou sua vida. E ele comprava qualquer livro sobre o Japão na II Guerra, de modo que o Zé sempre reservava para ele qualquer livro que aparecesse lá sobre o assunto. O exemplo mostra bem o quanto ele conhece bem cada um de seus clientes.
Pouco tempo depois chegou um cliente querendo a Bíblia de estudos. Ele tirou de trás do balcão. "Esse é um dos livros mais roubados", explicou ele. "Então não deixo à mostra".
A simpatia e os clientes fixos fizeram com que a banca do Zé sobrevivesse em meio ao fechamento geral dos sebos de rua de Belém.
Para quem gosta de quadrinhos e literatura o sebo do Zé é parada obrigatória .
O sebo do Zé fica próximo do Mercado de São Brás, no cruzamento das ruas José Bonifácio com Faria Brito.

Dia do quadrinho nacional: 7 quadrinistas nacionais para conhecer

 

O jornal Correio do Cidadão, de Guarapuava (segundo a Amazon, a cidade mais nerd do Brasil) fez uma matéria sobre o dia do quadrinho nacional e publicou uma relação de sete quadrinistas que o leitor deveria conhecer. E, entre os diversos nomes de feras dos quadrinhos, colocou o meu. Uma hora! Para ler a matéria, clique aqui.

Xuxulu anda dormindo na aula

 

O livro dos cinco anéis

 



Miyamoto Musashi foi o mais célebre samurai. Conseguindo sua primeira vitória em duelo aos 13 anos, Musashi nunca foi derrotado. Aos 30 anos, após vencer Sasaki Kojiro, um dos mais hábeis samurais da época, Musashi passou por uma grande mudança espiritual. Recolheu-se para buscar o significado mais profundo da luta das espadas. Para isso ele começa a meditar e a praticar pintura e caligrafia.
Aos 60 anos, escreve para seu discípulo um livro contendo seus ensinamentos e seu estilo, Niten Ichi Ryu. Essa obra, chamada o livro dos cinco anéis, se tornou um dos mais importantes livros de estratégia do Japão.
A obra foi publicada em edição bilíngue (português-japonês) em 2010 pela editora Conrad. É uma linda edição, com ilustrações e textos explicativos nas bordas.
O livro é interessante tanto para entender a cultura japonesa quanto para entender a estratégia de guerra. Segundo musashi, os mesmos princípios usados para derrotar um único homem podem ser usados para derrotar 10 milhões de inimigos. Para ele, um dos princípios básicos é que um guerreiro deve entender não só de batalhas, deve conhecer e dominar várias artes, não só a militar. Daí porque ele se dedicou a aprender pintura e caligrafia, por exemplo. Nesse sentido, o livro já era, naquela época, uma ode contra a hiper-especialização. Quanto mais amplo o conhecimento de alguém, maior a chance dele se destacar naquilo que é sua especialidade.
Muito da filosofia de Musashi vem do zen-budismo e podemos notar isso nos trechos em que ele recomenda saber reconhecer o tempo certo da ascensão e declínio de todas as coisas. Ou quando ele afirma que tanto no cotidiano quanto nos momentos de luta o espírito deve permanecer inalterado, alerta, perfeitamente tranquilo e equilibrado: “Nunca se permita paralisar, conserve o espírito sempre livre, mas de prontidão. Mesmo com o corpo relaxado em situações de repouso, mantenha o espírito alerta e, quando o corpo estiver agitado, o espírito deve permanecer tranquilo”.
O autor orienta a conhecer o ambiente em que se dará a luta e usá-lo a seu favor: por exemplo, colocar-se na posição de combate com as costas voltadas para o sol, ou de houver um fogueira, com as costas voltadas para a fogueira.
Um dos capítulos mais interessantes do livro, fundamento básico da estratégia de guerra é aquilo que ele chama de “pressionar contra ao travesseiro”. A técnica consiste em nunca deixar que o adversário comande seus movimentos: “É fundamental, a qualquer custo, subjugá-lo à sua vontade (...) O importante na estratégia militar é neutralizar as ações úteis do oponente e permitir as inúteis”.
São dicas que nitidamente têm aplicação não só na guerra, mas no marketing, no marketing político ou qualquer outra situação em que uma pessoa ou organização se deparada com algum tipo de adversário.  

domingo, janeiro 29, 2023

Fundo do baú - Os herculóides

 


Os herculóides é uma série criada pelo desenhista Alex Toth para a Hanna-Barbera e exibida pela primeira vez nos EUA no ano de 1967 num total de 36 episódios. Cada episódio tinham duração de 9 minutos.
O seriado fazia parte de uma iniciativa da Hanna Barbera de investir em desenhos de aventura e ficção-científica e foram provavelmente o primeiro contato de muitas crianças com esses temas.
Os personagens eram o casal Zandor, Tara e o filho Dorno. A equipe ainda incluía alguns seres não humanos, como Zok, o dragão alado, Igoo, um gorila de pedra, Tundro, uma mistura de rinoceronte com um triceratops de dez patas e Gloop e Gleep, duas criaturas de um material elástico capazes de assumir todas as formas imagináveis.

Xuxulu não gosta de dividir os brinquedos

 

Revista polonesa Krakers

 

Zulu é uma história em quadrinhos com texto meu (a partir de uma ideia de Walter Klattu) e arte do grande Will. É um exercício de narrativa paralela: enquanto Zullu enfrenta os perigos para cumprir sua missão de matar a Medusa, eu conto, com o texto. No final, as duas tramas se juntam e fica claro porque só ele seria capaz de matar a Medusa. Essa HQ foi publicada na revista polonesa Krakers no ano de 2015. É curioso ver meu texto em uma língua incompreensível para mim.

Sargento Rock – A rocha e a muralha

 


O sargento rock era sem dúvida o mais durão da companhia moleza.

Mas um dia chegou um grandalhão que parecia colocar o sargento no chinelo. Seu nome era Joe Muralha.

Como em todas as histórias escritas por Robert Kanigher, há uma repetição de situações.

Muralha consegue destruir um tanque. 


Logo que chega à Moleza, Joe Muralha debocha: “Então esseé o Rock? Não me parece grande coisa”. Em seguida temos um quadro com um close do sargento e o texto: “Se o sargento ouviu, ele não respondeu”.

Na sequência, a companhia Moleza é atacada por uma tropa nazista protegida por um tanque. Joe Muralha sozinho avança na direção do tanque e consegue inutilizá-lo com uma granada. Passado o episódio, Muralha afirma: “Então esse é o Rock, hein? Não parece tão durão!”. E de novo um close do sargento e o texto: “Mas se rock ouviu, ele não respondeu”.

Rock não parece tão durão. 


Quem está acostumado com as histórias do personagem, sabe que no final essa situação sofreria uma reviravolta. A história termina o soldado Joe comentando: “Uma muralha pode cair... mas uma rocha não!”.

Essa história foi publicada na revista Our Army at War 83.

O pior show do mundo

 


Certa vez, quando visitávamos Caldas Novas, minha mulher viu o anúncio de um show intitulado “A dança através do mundo” e insistiu para que fôssemos. O ingresso era caro, mas o cartaz prometia uma verdadeira viagem ao redor do mundo da dança. Mal imaginávamos a roubada na qual estávamos nos metendo. 
A plateia já deveria ter nos alertado: era nítido que éramos os únicos turistas ali. Alias, nos provavelmente éramos os únicos que não eram amigos pessoais do diretor do espetáculo, que aparecia entre cada número para falar de sua vida, seu sonho de ser bailarino e sua loja de móveis. Aproveitava também para agradecer, um a um, cada pessoa da plateia, todos empresários locais. Esses intervalos falados duravam uma eternidade e incluíam até mesmo piadas internas, que só podiam ser entendidas entre as partes. Detalhe: todos os homens estavam de ternos e todas as mulheres estavam com vestidos de festa.
Só essas intervenções seriam suficientes para colocar o show no pódio de qualquer competição de roubada. Mas tinha também os números musicais.
Imagine que um carnavalesco daltônico e drogado resolvesse fazer figurinos de um show. Tudo tinha plumas, tudo tinha paetês, tudo era completamente sem noção.
Para se ter uma ideia, os dançarinos de tango se vestiam como piratas!  Eram tantos acessórios que muitas vezes os bailarinos mal conseguiam se mexer. 
O pior de tudo é que o show simplesmente não acabava. Terminava um número de dança, começava uma intervenção do diretor, que se achava tão talentoso que chegava até mesmo a cantar! Afinal de contas, nada é tão ruim que não possa piorar.

sábado, janeiro 28, 2023

Caligari: a história de uma adaptação

 



    O sucesso do filme Caligari fez com que ele fosse adaptado mais de uma vez para outras mídias. A obra já foi citada diversas vezes em gibis e ganhou uma adaptação em quadrinhos em 1992, pela editora Monster Comics, numa minissérie em três partes assinada por Ian Carney e Michael Hoffman. Em 1999, os roteiristas Randy e Jean-Marc Lofficer e o ilustrador Ted Mckeever juntaram elementos de Batman, Super-homem, Metrópolis e Caligari no especial Nosferatu. Quando Tim Burton lançou o segundo filme do Batman, em 1992, o visual do Pinguim era inspirado em Caligari, visual que depois foi aproveitado no desenhado animado dirigido por Bruce Tim.
    Curiosamente, embora os quadrinhos de terror sempre tenham feito muito sucesso no Brasil, em nosso país nunca o filme de Wiene havia sido adaptado para a nona arte.
    A idéia para isso surgiu em 1998. Nessa época estava sendo lançada a graphic novel Manticore, em duas partes, com roteiro meu, pela editora Monalisa. O sucesso de crítica (a revista ganhou o HQ Mix, o Angelo Agostini de melhor roteirista e o prêmio da Associação Brasileira de Arte Fantástica) fez crer que a revista teria uma continuidade. A idéia, então, era transformar a Manticore numa revista mix de terror e ficção-científica nos moldes da extinta Kripta. Uma das ideias era fazer histórias sobre mitos urbanos, como O bebê diabo e sobre clássicos de terror, como Caligari.
Uma série de decisões editoriais equivocadas fez com que a revista, apesar do sucesso, não tivesse continuidade, mas algumas dessas histórias seriam de fato produzidas. As duas citadas acima foram lançadas em 2008 pela editora HQM no especial Quadrinhofilia, que reúne trabalhos de José Aguiar.
O processo de adaptação começou com uma análise do filme. Eu e o desenhista assistimos ao Gabinete do Dr. Caligari juntos, fazendo anotações. A ideia era captar as principais características da história, afinal, o segredo de uma adaptação não é ser totalmente fiel à trama, mas ser fiel ao espírito da ideia original. Assim, a deformação dos cenários e a maquiagem exagerada foram os elementos mais facilmente percebidos. Como havia uma limitação de seis páginas, a história precisava ser condensada, mas ainda assim fazer sentido e ser fiel.
Uma das questões discutidas foi com relação ao uso de diálogos e legendas. Como o filme é mudo, o caminho mais fácil seria fazer uma HQ muda. Mas cinema e quadrinhos são mídias completamente diferentes e fazer isso seria um erro. Mesmo em seus primórdios, as HQs não eram mudas, pois não havia limitação técnica ao uso da linguagem falada. Assim, decidiu-se que se teria diálogos e legendas (representando a fala de Alan, em off).
    O passo seguinte, após a estruturação de um argumento-sinopse, foi a elaboração de um roteiro.  O roteiro das duas primeiras páginas é apresentado abaixo, para dar uma ideia dessa fase da adaptação:

Página 1
Q1 – Plano detalhe de folhas secas caídas no chão.
Velho (off): Os espíritos... eles estão em todos os lugares...
Q2 – Plano médio. Francis e o velho estão sentados, lado a lado, conversando.
Velho: Nos amedrontam... eles me afastaram de minha mulher e meus filhos.
Q3 – Os dois estão conversando, mas agora Francis olha para o lado, para Jane, que aparece vestida de branca, quase como um espírito.
Velho: Foi assim que aconteceu, meu rapaz...
Q4 – Jane passa pelos dois, sem notá-los. Quadro mudo. 
Q5 – Quadro horizontal. Créditos. Francis e o velho em primeiro plano, vistos de costas, enquanto Jane afasta-se, em último plano.
Velho: Conhece a jovem?
Francis: Aquela é minha noiva, Jane.
Q6 – Alan e o velho conversando, em plano médio.
Francis: A pobre jamais se recuperou do que nos aconteceu...
Q7 – Agora um plano fechado dos dois, conversando. Francis, agora em segundo plano, sendo observado, com olhar perdido, pelo velho.
Francis: Também tenho uma história...
Q8 – plano fechado de Francis, em gesto amplo, expressionista.
Francis: ... ainda mais extraordinária do que a sua...
Q9 – Close de Francis. Destaque para seu olhar melancólico, ampliado pela “maquiagem pesada”.
Francis: Tudo começou com a chegada da feira de variedades à nossa cidade.


Página 2 Nesta página teremos um quadro grande, o 4, ocupando boa parte da página, num tom expressionista.
Q1 – Quadro geral da feira, com Caligari aproximando-se do leitor.
Texto: E com a feira
Q2 – A continuação da mesma cena, mas agora Caligari já está mais próximo de nós.
Texto: veio
Q3 – Agora o quadro é tomado por Caligari.
Texto: O doutor Caligari.
Q4 – Chegamos ao quadro de impacto da página. Caligari espera o escrivão. Como combinamos, a mesa do escrivão é extraordinariamente alta e distorcida, simbolizando, como no filme, o monstro da burocracia. Caligari é visto como pequenino diante desse monstro.
Texto: Antes de instalar sua feira, o doutor foi pedir permissão ao escrivão. Ele foi duramente humilhado. Teve que esperar por horas para ser atendido.

O exemplo serve para demonstrar como foi o processo de adaptação nessa fase de estruturação do roteiro. Bom lembrar que tal roteiro foi construído a partir das conversas entre desenhista e escritor, e reflete essa conversa. Posto isso, passemos a analisar o texto. 
A fala de Francis, quebrada, nos três primeiros quadros da página 2, revela influência do quadrinho britânico do final dos anos 1980, em especial de autores como Neil Gaiman (Orquídea Negra) e Alan Moore (Monstro do Pântano).
A narrativa, em off, é intencionalmente coerente e racional, como forma de evitar que o leitor perceba que se trata de um conto de um louco, o que já é evidenciado pelo desenho, sendo uma pista de como a trama irá terminar. Assim, o roteiro procurou preservar o final surpresa.
Se o texto parece uma narrativa fantástica contada por um homem racional, o desenho distorce essa narrativa, demonstrando o real estado das coisas.
A segunda página, já descrita no roteiro acima, apresenta o quadro de impacto de Caligari pequeno, numa perspectiva distorcida, diante da enormidade da burocracia.

A página 3 é dominada pela figura esguia de Cesare. A magreza e altura atípica do personagem orientam a leitura, que ganha foco no rosto fantasmagórico do sonâmbulo. Os personagens normais são eclipsados por essa figura distorcida.

A página 4 é centralizada pela figura de Jane, como se os fatos refletissem dela. Ao fitar a página, o leitor tem seu olhar magnetizado pelo olhar assustado de Jane e sua figura, em sépia azul. A tendência do olhar é correr na direção do último quadro, em que Cesare agarra Jane, sequestrando-a.
Esse caos da diagramação reflete o caos interno dos personagens, suas angústias e inquietações, no que poderia ser considerado um equivalente quadrinístico da técnica expressionista.


Avançando, na página 6 temos a prisão de Caligari. Ele se contorce e grita, lutando com os médicos. Vista em oposição à página seguinte, vemos que ela se reflete no quadro 4 da página 7. Ali é o narrador que é preso e repete a mesma posição de Caligari, como se fossem duas faces da mesma moeda: num lado a racionalidade, no outro a loucura. Como o lado racional é na verdade uma narrativa distorcida, uma falsa racionalidade, esse contraste cria uma inquietação no leitor que nos lembra o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, que pretende renovar nossa percepção e nosso modo de compreender as coisas.

    Na página 7 há um diálogo, não existente no filme, que pretende destacar exatamente a crítica ideológica do filme, pensada originalmente pelos roteiristas (Janowitz e Carl Mayer). Alan pula sobre Caligari e grita: “Tolos! Não percebem? Ele planeja nosso destino!”.
A fala é uma referência direta à interpretação de Kracauer, segundo o qual Caligari antecipa Hitler e o nazismo. Assim, se por um lado respeitamos a moldura introduzida por Fritz Lang, por outro destacamos a crítica social e política imaginada pelos roteiristas.