Entrei. Um vento forte varria o chāo da estação, levantando pedaços de papel e folhas. Uma senhora aflita lidava com três filhos, tentando direcioná-los à locomotiva. O maquinista já apitava, fazendo com que rasgos de fumaça se misturassem ao vento.
Desci. Corri até eles. Peguei um dos guris no colo e outro pela mão. As grandes rodas de ferro já se movimentavam quando entramos. Coloquei o rapazote no chāo e enxuguei o suor do rosto. O serviço de escritório havia me enferrujado até a medula. O corpo todo arfava ao menor exercício.
- Brigado. – agradeceu a senhora, reunindo a ninhada ao seu redor.
- Não há de quê. - respondi, ofegante.
Seguimos em frente e talvez por coincidência, havia somente quatro lugares vagos. Sentamos Os cinco juntos, a senhora de frente para mim. Pude, então, observá-la Devia ter uns 25 anos, embora aparentasse mais. Varizes serpenteavam por toda sua perna. O vestido de chita, estampado de flores, a custo segurava os seios moles. Tinha mão grossas, de gente que lida com a terra. O rosto era marcado pela vida. Rugas precoces avolumavam-se sobre a pele queimada. O cabelo, descuidado, deslizava simplesmente em direção aos ombros. Os olhos, tinha-os tristes, cabisbaixos, injetados de sangue. Havia de ter sido bela um dia.
-Seu marido não vem? - perguntei eu, depois de algum tempo.
Ela abaixou o rosto. Passou algum tempo assim. Depois observou os meninos. Estavam todos vestidos iguais, com calças que deixavam entrever o joelho e camisas de algodão. Ela vistoriou o que estava no seu colo. Arrependi-me da pergunta e olhei pela janela, desconcertado.
- Não vem, não senhor. - exclamou ela, de repente
Olhei-a. Ela abaixou os olhos
- Esta esperando você? - arrisquei
- Não tá mais não. O pobre ficou lá na cidade.
Interessou-me. Fiz-lhe novas perguntas que ela respondia com monossílabos, até que desatou a chorar. Consolei-a. Segurei sua mão. Pedi que demonstrasse força diante dos filhos, ao que ela se recompôs. Encostou na cadeira enxugou as lágrimas e pôs-se a falar. Soluçava e às vezes até vinha-lhe à garganta novo ataque de choro, que ela segurava heroicamente.
Contou-me que havia casado nova, com um rapaz das redondezas, lavrador como ela. Naquela época ainda não existia o trem e até a cidade eram léguas no lombo do cavalo, se o viajante fosse rico, ou a pé, se fosse pobre. Contou-me das andanças que precisou fazer no dia do casório. Falou do caminho estreito, sujo de esterco, que teimava em grudar na ponta do seu vestido branco. Narrou o episódio de uma cobra que aparecera no meio do mato e como seu futuro esposo a matou querendo impressioná-la
Casaram na cidade e voltaram à noite para a roça
No começo viveram com sua mãe, depois construíram uma choça de pau-a-pique. Teriam sido felizes, não fosse uma promessa que o marido lhe havia feito na lua de mel: ficaria rico! Havia de ver! Ficaria rico de comprar fazendas até onde a vista pudesse alcançar. Eles beberiam cafë em xicaras, como haviam visto na casa do coronel, e seus filhos estudariam na capital. Seriam doutores
- Vão sê dotô, Maria, de falar difícil de ninguém entender.
Tiveram um filho e depois outro e outro. Ele não se esquecia da promessa Haviam de ser ricos.
Foi quando surgiu o trem de ferro. Passava a umas tantas terras da choupana, mas João - esse era seu nome- ia todo dia religiosamente, ver o trem passar. Regalava-se. Batia palmas, ria, gritava para os passageiros. Seis olhos brilhavam
-É isso, mulher! O trem! É o jeito da gente ficar rico, não vê?
- Mas como, João
- Como? Como? Mas então, com aquela ferraiada toda.. é coisa de rico, coisa de rico, mulher! O homem que dirige aquele trem deve de ser rico até não mais podé contá..
- E comoé que voce vai ganhá dinheiro com isso, João?
- Mas como? Como?! Eu entro no trem e converso com o homem, sô. Proponho sociedade.. eu trabalho para ele e recebo uma parte das passage..
- Mas e se ele não aceitá?
- Sempre vale a viage, num vale?
-E como é que ocê vaì entrar no trem, homem de Deus?
- Ah, isso é cá comigo.
João mudou. Não cuidava da roça. Deixava a vaca pastando ao léu, voltava tarde para casa... Ficava o tempo todo no morro, observando os trilhos, esperando a hora em que trem passava.
Vieram avisá-la. Estava morto. No fim da tarde, quando o trem passava, João pulara sobre ele como se fosse um cavalo. Até conseguira se agarrar, mas desiquilibrara, perdera o pé... e caira. Seu corpo rolou pelo morro e a cabeça deslizou para debaixo do trem.
A mulher agora vinha do enterro. O padre insistira para que fossem depositar o corpo no cemitério da cidade. Algumas pessoas juntaram seus cobres, a fim de pagar-lhe a passagem, a ela, aos ortãos e ao marido morto.
No enterro compareceram alguns gatos pingados, mais por curiosidade que por piedade. Os amigos estavam todos na roça.
Nisso o trem parou.
-Brigado, seu moço, brigado. - disse ela, pegando os filhos.
Desceram. Observei-os durante algum tempo, mas o trem pegou velocidade e eles desapareceram no meio do rastro de fumaça.
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