sábado, maio 31, 2025

As aventuras de Hans Staden, de Monteiro Lobato

 


Conhecido como Duas viagens ao Brasil, a obra Hans Staden foi o primeiro livro escrito sobre o Brasil e povoou o imaginário europeu à época com sua descrição dos índios antropófagos. Em 1927, Monteiro Lobato resolveu trazer a obra para o público infantil. O interessante da versão de Lobato é que ele recheia o livro de comentários, a maior parte deles na boca da Dona Benta, que narra a história. Muitos desses comentários, aliás, vão de encontro à visão do próprio Hans Staden.  

Hans Staden era um alemão que se encantou pelo mar e pretendia visitar a Índia. Uma série de acontecimentos fez com que ele viesse parar no Brasil onde se tornou responsável pelo forte de Bertioga.

Num dos dias que estava caçando, foi capturado pelos tupinambás, inimigos declarados dos tupiniquins, aliados dos portugueses. Os tupinambás eram canibais e costumavam comer os adversários aprisionados, mas não fizeram isso com Hans por o acharem curioso. Nunca tinham visto um loiro de olhos azuis e resolveram levá-lo para que as mulheres da tribo pudessem se divertir com ele. O alemão vai usando de diversos estratagemas para se manter vivo, inclusive usando uma doença que assolou diversas pessoas da tribo para convencer os indígenas de que seu deus queria se vingar deles por quererem comê-lo.

Lobato era um narrador nato e usa essa qualidade para tornar ainda mais interessante a história. Chega um ponto em que o leitor fica preso na trama, tentando antecipar a forma como Hans conseguiu se libertar (que ele conseguiu sobreviver é óbvio, não?).

Mas talvez o mais interessante da obra sejam os comentários de Lobato, que vão de antropologia a história, passando pela ética. Quando Narizinho diz que o método de preparo do cauim, a bebida indígena, é nojento, Dona Benta retruca: “Para nós que temos outra cultura e outro modo de ver. Se você fosse uma indiazinha daqueles tempos, havia de achar a coisa mais normal do mundo e não deixaria de comparecer a todas as mascações de abati”.

Ao comentar as atrocidades cometidas pelos europeus na América, Lobato diz que “Não há termo de comparação entre o modo pelo qual os índios tratavam os prisioneiros e o que era de uso na Europa. Lá a ‘civilização’ recorria a todos os suplícios, inventava as mais horrendas torturas. Assavam os pés da vítima, arrancava-lhe as unhas, esmagava-lhe os ossos, davam-lhes de beber chumbo derretido, queimavam-no na fogueira. Não há monstruosidade que em nome da lei de Deus  os carrascos civilizados, em nome e por ordem dos papais e reis, não tenham praticado”.

Segundo Lobato, a história da humanidade é uma pirataria sem fim, em que o mais forte sempre tem razão e vai pilhando o mais fraco.

Quando Narizinho pergunta porque esses homens cruéis entraram para a história como gloriosos, dignos de estátuas, Dona Benta responde: “Por que a história é contada por eles. Um pirata quando escreve sua vida dá a impressão de que é um magnânimo herói”.

Curiosamente, enquanto eu lia o livro, Donald Trump tomava posse e seu discurso era a glorificação do mais forte submetendo o mais fraco, justamente aquilo que Lobato critica durante toda a obra, o que mostra como pouca coisa mudou na história da humanidade.

Apesar de toda a crítica, Lobato não escapou da visão colonial. Quando narizinho se espanta com a ingenuidade dos indígenas, que era facilmente enganados pelo alemão, Dona Benta responde: “É que possuíam um grau de inteligência muito inferior ao dos brancos. Daí a facilidade com que os peros (portugueses) e espanhóis, em muito menor número, conseguiram dominá-los”.  

Uma curiosidade é que o título original da obra de Hans Staden é "História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão".

Sem comentários: