Dois personagens muito parecidos, um muito poderoso e rico
e outro muito humilde, trocam de lugar. Você já deve ter visto essa história em
algum lugar. Adaptada para filmes, séries e até K-dramas, como O rei de
porcelana, essa trama surgiu no livro O príncipe e o mendigo, escrito por Mark
Twain e publicado em 1881.
A história acompanha Tom Canty, um garoto londrino nascido
na extrema pobreza, obrigado e mendigar e atormentado pelo pai e pela avó
paterna, que se divertem dando surras nele. Do outro lado, o Príncipe de Gales,
Eduardo VI. A diferença entre os dois já é definida na frase de abertura do
livro: “Na antiga cidade de Londres, num certo dia de outono no segundo quarto
do século XVI, nasceu um menino para uma família pobre, de nome Canty, que não
o desejava. No mesmo dia, nasceu outro menino inglês, para uma família rica,
chamada Tudor, que o desejava”.
Apesar da origem humilde, Tom era fascinado pela realeza, o
que o leva um dia a visitar a residência do Príncipe de Gales e, ao ser
agredido pelo guarda, recebe o apoio do príncipe, que o leva para dentro e o
alimenta. Por brincadeira, eles trocam de roupa e percebem que são muito
parecidos. Ao sair para repreender o guarda que machucara o mendigo, o príncipe
é confundido com este e expulso do palácio – o que dá origem à trama.
É curioso que essa história tenha se popularizado como uma
celebração da nobreza, uma vez que, nitidamente, Twain é extremamente crítico a
esse regime de governo. Boa parte do livro é dedicado a demonstrar como esse é
um sistema que ineficiente.
Representação disso é o ritual matinal para vestir o
príncipe de gales: “No início, a camisa foi apanhada pelo Primeiro Camarista,
que a passou para o Primeiro Lorde dos Escudeiros, que a passou para o Segundo
Cavaleiro do Quarto de Dormir, que o passou... “ e assim em diante. Uma
atividade simples e cotidiana, como vestir o rei, era exercida por dezenas de
pessoas. A razão disso é que, enquanto o rei aumentava seu poder, tirando o
poder da pequena nobreza, era necessário dar algo em troca – e o que se dava
era um emprego no palácio real com uma atividade puramente simbólica.
No meio de um sistema tão sem sentido, o mendigo Tom muitas
vezes parece a pessoa mais racional. Quando é informado de que o rei morreu e
tudo que será gasto com a sua coroação, o primeiro impulso do garoto é
perguntar: “Não seria melhor pagarmos antes da dívida da coroa?”, mas silencia
com medo de ser tido como louco.
Mark Twain traz diversas curiosidades absurdas da época,
como a figura do garoto de surras, que apanhava no lugar do príncipe quando
este se saía mal nas lições, ou nos hábitos violentos, como a pena de morte na
fogueira para membros da igreja Batista.
Apesar do tom nitidamente crítico, Mark Twain constrói uma
história fascinante em que ambos, tanto o mendigo quanto o príncipe, evoluem
espiritualmente e aprendem com suas experiências. Na trama tudo se encaixa, em
especial pequenos detalhes como o sinete real, que desaparece e a primeira
refeição de Tom como príncipe, em que ele “rouba” nozes. Pequenos detalhes ques
e tornam ganchos para o final.
Essa habilidade do escritor criou uma fábula universal que
passou a ser reproduzida nas mais diversas mídias e culturas, tornando-se a
mais famosa narrativa sobre duplos.
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