Embora normalmente seja visto como um livro infantil, As viagens de Gulliver é um dos livros mais críticos que já li, repleto de metáforas políticas. Eu já havia percebido isso quando li pela primeira vez, em uma belíssima edição da Nova Cultural com adaptação de ninguém menos que Clarice Linspector. Mas só fui perceber o alcance e a ferocidade dessa crítica recentemente, quando tive a oportunidade de ler uma edição, também da Nova Cultural, com quase 100 páginas de notas.
Johnathan Swift, o autor, era uma figura proeminente na
época e havia caído em desgraça quando o governo Tory, para o qual trabalhava, perdeu
o poder para os Whig. Os Tory haviam negociado a paz com a França, após um
longo conflito e os whig os havia acusado de traição por terem assinado um
tratado de paz, que, embora vantajoso para a Inglaterra, não colocava de
joelhos a França. Os Tory foram perseguidos.
Swing se vingou-se escrevendo As viagens de Gulliver. Para
publicar a obra sem que o autor fosse perseguido foi montada uma verdadeira
operação de guerra. Os amigos transcreveram os originais, para evitar que a
letra de Swift fosse usada como prova com ele. Além disso, o livro foi deixado
na casa do editor altas horas da noite por uma carruagem de praça. O editor
adorou o livro, mas fez várias mudanças para tornar a crítica menos óbvia e
publicou como se fosse de fato o livro de um tal Gulliver (só anos depois Swift
assumiria a autoria).
O livro foi um sucesso imediato por uma razão simples: ele
aliava crítica política a uma narrativa de aventuras empolgante, fazendo dele o
melhor exemplo de livros de viagem tão em moda na época.
A primeira edição que li tinha texto de Clarice Linspector.
Na história, Gulliver é cirurgião em um navio cargueiro e
quando este naufraga, vai parar em um país, Lilipute, em que todos os
habitantes são minúsculos. Inicialmente aprisionado, Gulliver logo se torna um
favorito do rei. A sequência tem momentos memoráveis, como quando liliputianos
são colocados nos bolsos de Gulliver e devem relatar tudo que viram lá. Lá eles
acham, por exemplo, um objeto que é um globo achatado, metade de prata, metade
de metal transparente: “Ele aproximou a máquina dos nossos ouvidos e ouvimos um
ruído contínuo, como o de uma roda-d´água. Imaginamos que se trata de um animal
desconhecido ou de um deus que ele adora. Estamos mais inclinados a essa
segunda hipótese, porque ele nos assegurou que não faz nada sem consulta-lo”. Era
um relógio.
Mas as melhores partes são as sátiras ácidas de Swift à nobreza
europeia e ao governo inglês em específico. Em Lilipute, por exemplo, o esporte
nacional são as danças na corda bamba, esporte praticado por todos aqueles que
querem um cargo no governo. Aquele que saltar mais alto sem cair ganha o cargo.
A ganância e falta de gratidão dos governantes é outro
aspecto abordado pela obra. Um exemplo é quando Gulliver atravessa para a ilha
inimiga de Blefescu (que representa a França, enquanto Lilipute representa a Inglaterra)
e traz consigo boa parte da frota da marinha daquele país. Ao invés de se
sentir agradecido, o rei reclama de Gulliver não ter despojado o inimigo de
todas as suas forças e não ter transformado o outro país em uma colônia.
Ainda mais ácida é a metáfora encontrada por Swift para a
guerra entre os dois países. Num passado recente, o governante de Lilipute
havia ordenado que todos os seus súditos só quebrassem os ovos pela parte menor.
Milhares de pessoas foram mortas porque se recusavam a quebrar os ovos pela
parte menor e centenas de livros escritos sobre a controvérsia. Os ladograndenses
procuraram refúgio na ilha vizinha, gerando a guerra entre os dois. A situação toda
é uma metáfora da questão religiosa envolvendo Inglaterra e França, uma vez que
a Inglaterra havia criado uma nova religião (a anglicana) e a França permanecia
católica, o que, teoricamente, seria o motivo da guerra entre os dois países.
No final, Gulliver acaba sendo perseguido e quase morto
(alguns ministros haviam proposto uma pena mais humana: cegá-lo) ao urinar
sobre o palácio como forma de apagar um incêndio.
Embora a parte mais famosa seja a que se passa em Lilipute,
há uma parte em que Gulliver vai parar em um país em que todos são gigantes e
até um capítulo dedicado a uma ilha flutuante. A parte da ilha flutuante é a que
a aventura se torna menos visível e a sátira social se torna mais clara. O
local, chamado de Laputa, era habitado por matemáticos tão imersos em seus
problemas que tinham que contratar servos munidos de bexigas cheias de ervilhas
secas para baterem neles para despertá-los de suas elocubrações. Durante uma
conversa, por exemplo, o servo batia na boca de quem deveria falar e no ouvido
de quem estava ouvindo. É um local de ciência inútil, em que mesmo uma
atividade simples como tirar as medidas para fazer uma roupa se transformava em
uma desculpa para práticas complexas, o que fazia com que todas as roupas tenham
tamanhos errados. A sequência toda é uma óbvia crítica à Royal Society em
especial a Isaac Newton, retratado como alguém eternamente preocupado que o sol
deixe de dar luz ao mundo ou que um cometa, ao voltar de sua órbita, possa
destruir nosso mundo.
Swift chega a ser cruel ao retratar a ilha flutuante como
um local em que as mulheres desprezam os maridos e demonstram excessiva
gentileza com estrangeiros. Ele estava nada menos que acusando Issac Newton e
outros cientistas da época de serem cornos. Não é por acaso que os amigos
tinham medo da repercussão do livro e de futuros processos.
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