terça-feira, agosto 12, 2008
Coisas frágeis
A única coisa ruim em Coisas Frágeis, o novo livro de Neil Gaiman, é a rapidez com que ele acaba. Eu o havia levado a uma viagem a um sítio na Ilha do Marajó, um local a dezenas de quilômetros da livraria mais próxima. Devorei o livro em dois dias e fiquei sem ter o que ler.
O britânico Neil Gaiman ficou famoso por seus roteiros de quadrinhos, especialmente para o personagem Sandman, e ajudou a elevar os comics a um novo patamar artístico e literário. Foi sua geração que fez com que os roteiristas fossem finalmente respeitados no mercado americano. Depois do sucesso dos quadrinhos, Gaiman enveredou pela literatura fantástica com Stardust e Lugar Nenhum, entre outras obras. Lugar Nenhum, por exemplo, é um ótimo exemplo de como escrever uma história fantástica apreciável até mesmo por quem não é fã do gênero. Stardust fez tanto sucesso que acabou sendo transposto para o cinema. Mas, apesar de ser muito competente em romances, é nos contos que Gaiman se sente mais à vontade. Mesmo em Sandman, os melhores momentos sempre foram as histórias curtas, como em ¨Calliope¨, ¨Sonhos de uma noite de verão¨ e ¨Um sonho de mil gatos¨ .
Em Coisas Frágeis, portanto, Gaiman está em seu elemento. O livro é composto de nove contos, escritos com objetivos diversos. Em comum à maioria deles o tom de homenagem. A obra é dedicada a Ray Bradbury, Harlan Ellison e Robert Scheckley.
Ray Bradbury notabilizou-se por trazer a poesia para a ficção-científica. ¨A vez de outubro¨, segundo conto da coletânea, tem influência óbvia desse autor norte-americano. O texto inicial parece ter sido tirado de um dos textos de Bradbury: ¨Era a vez de outubro, por isso fazia frio naquela noite, e as folhas estavam vermelhas e alaranjadas e caíam das árvores que circundavam a clareira¨. Na história, os meses do ano se reúnem ao redor de uma fogueira, comendo lingüiças assadas e bebendo sidra. A estrutura pessoas reunidas para contar histórias é um verdadeiro fetiche para Gaiman, que já a usou diversas vezes em Sandman.
¨A vez de outubro¨ foi escrito num encontro com Harlan Ellison em uma convenção. Os dois se trancaram num quarto de hotel, Gaiman com seu Laptop e Ellison com sua máquina de escrever, para produzir algo juntos. Como Ellison precisa terminar uma introdução, Gaiman iniciou esse conto. Ao mostrá-lo ao amigo, este respondeu: ¨Não, parece uma história de Neil Gaiman¨ e o texto, incompleto, foi arquivado. Anos depois, Peter Straub convidou Gaiman a participar da coletânea Conjunctions e ele se lembrou dessa história curta sobre um garoto morto e outro vivo. ¨Levei algum tempo para entender como realmente seria a história e, quando terminei, dediquei-a a Ray Bradbury, que a teria escrito muito melhor do que eu¨, escreveu o autor, na introdução do livro. Modéstia em excesso. O conto parece uma deliciosa mistura de Gaiman com Bradbury e é um dos pontos altos do livro.
¨Um Estudo em esmeralda¨ surgiu de um pedido de Michael Reaves, que estava editando uma coletânea intitulada Shadows over Baker Street. O organizador queria um texto que juntasse Sherlock Holmes com Lovecraft. Gaiman viu-se em apuros. Afinal, Lovecraft lidava com o irracional, a loucura, enquanto Conan Doyle apreciava a racionalidade em suas histórias. Apesar da incongruência de estilos, Gaiman fez um bom trabalho, tanto que acabou ganhando o prêmio Hugo, um dos mais prestigiados da Ficção-científica. Foi a partir desse conto que o autor se tornou membro do Baker Street Irregulars, um grupo de entusiastas de Sherlock Holmes fundado em 1934 por Christopher Morley e que já teve em seus quadros gente famosa, como Franklin D. Roosevelt e Isaac Assimov.
Gaiman se saiu bem imitando Conan Doyle. Em ¨Um estudo em esmeralda¨ aparecem todos os elementos que fizeram o sucesso de Sherlock Holmes, acrescidos de uma atmosfera steam punk e de pequenos textos que parodiam anúncios do século XIX ao mesmo tempo em que homanageiam obras famosas, como em: ¨O Doutor Henry Jekyll orgulhosamente anuncia o laçamento dos mundialmente renomados ¨pós de Jekyll¨para consumo popular. Não mais um privilégio de poucos. Liberte o seu eu interior!¨.
¨Lembranças e tesouros¨ destoa do restante da coletânea. No meio de tantos textos poéticos, a narrativa noir desse conto é quase como um soco no estômago. Ainda assim, é um bom conto. Escrito originalmente como história em quadrinhos para a coletânea ¨It´s dark in London¨, de Oscar Zarate, mas acabou virando um conto. Apesar da narrativa a la Dashiell Hammett, o conto remete a Jorge Luís Borges, uma outra grande influência de Gaiman. A história do povo cujos homens são o extremo da beleza poderia muito bem ter saído de um dos livros do autor argentino.
Um dos pontos altos de Coisas Frágeis é ¨Golias¨, um conto escrito para o site de Matrix, explorando o universo da série. Gaiman leu o roteiro do primeiro filme, antes que ele fosse lançado no cinema e escreveu essa narrativa. Nela, a terra está sendo atacada por uma forma de vida alienígena e a única forma de salvar o planeta é despertando um dos humanos escravizados pela Matrix. Gaiman brinca com a idéia de tempo psicológico, fazendo uma história que, surpreendentemente, tem final feliz. Ou de uma felicidade virtual. ¨Golias¨ tem o mesmo nível do primeiro filme e é superior aos outros dois da trilogia.
¨O pássaro do sol¨ tem jeito de deliciosa sobremesa. É um conto sobre um grupo de pessoas, o Clube Epicuriano, que dedica sua vida a experimentar pratos inusitados. Foi escrito como presente de aniversário para a filha de Gaiman, quando ela fazia 18 anos. Ele pretendia imitar o estilo de R. A. Lafferty. ¨Suas histórias eram incríveis, estranhas e inimitáveis – logo na primeira frase, você já sabia que estava lendo um conto de Lafferty¨. O resultado foi um conto saboroso e diferente. Seria perfeito para fechar o livro.
Infelizmente, essa honra coube ao texto mais fraco da coletânea. ¨O Monarca do vale¨ foi escrito no espírito de Beowulf, filme que Gaiman roteirizou em conjunto com Roger Avary. O resultado, apesar da boa influência é um conto arrastado e previsível que nem de longe mantém a mesma poesia dos outros da coletânea. Ainda assim, é um bom texto, o que garante a leitura até o final.
Coisas frágeis mostra bem porque Neil Gaiman está se tornando um autor cada vez mais conhecido, mesmo por aqueles que não leram seus quadrinhos na década de 1990. A Conrad fez um bom trabalho de edição. Só não leve apenas ele para ler nas férias. Vai acabar nos primeiros dias.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário