Um dos assuntos mais comentados das mídias sociais nas últimas semanas — e ignorado pela maior parte da grande mídia — é a relação entre a revista Veja e o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Investigação da Polícia Federal descobriu mais de 200 ligações entre o diretor da revista em Brasília, Policarpo Júnior e o bicheiro. Além das várias referências a jantares do jornalista com Cachoeira e com o diretor da Delta, Cláudio Abreu (em uma das gravações, Cláudio Abreu diz que achou que o jornalista ia lhe "dar um beijo").
A revista se defende argumentando que na prática jornalística até mesmo um criminoso pode ser uma fonte de informações.
De fato, um repórter pode entrevistar um bandido. Se houvesse qualquer impedimento nesse sentido, simplesmente não existiria o jornalismo policial. São inúmeros os casos em que o jornalista consegue a informação antes mesmo da polícia. A própria Veja tem um exemplo interessante: foi na entrevista com uma repórter da revista que o Maníaco do Parque admitiu seus crimes. Ou seja: não há nada de errado em usar um criminoso como fonte de informação. O que a imprensa não pode fazer é trabalhar em favor do criminoso-fonte. Da mesma forma, não pode haver intimidade entre ambos. E vários indícios indicam que foi o que ocorreu no caso Veja-Cachoeira.
Para começar, o número de ligações trocadas entre Policarpo Júnior, diretor da Veja em Brasília: são duzentas ligações, que revelam um nível de intimidade incomum nesse tipo de relação, em especial em vista do fato de que Policarpo sabia que Cachoeira era contraventor.
O mesmo Policarpo em 2005 foi responsável por livrar Cachoeira da prisão. Na época, a Veja publicou uma reportagem denunciando que o deputado André Luiz havia pedido 4 milhões para não incluir o nome do bicheiro na CPI da Loterj. Policarpo chegou a servir de testemunha do bicheiro e afirmou ter a gravação da conversa. O resultado foi a desmoralização da CPI e a liberdade do bicheiro.
Ao que tudo indica, Cachoeira usava a revista como forma de derrubar aqueles que não se encaixavam no seu esquema de corrupção ou de ameaçar os que não cumpriam sua parte em acordos, como parece ser o caso do governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz. As escutas revelam que o governador fez alguma promessa a Cachoeira no período eleitoral. Uma vez que a mesma não havia sido cumprida, o grupo resolveu bater no governador, usando a Veja. A ideia era derrubar Agnelo e colocar em seu lugar o vice, mais simpático ao grupo.
A forma como a Veja tratou durante os últimos anos o senador Demóstenes Torres, mão política de Cachoeira, é exemplar. A revista nunca poupou elogios ao senador e chegou a chamá-lo de Mosqueteiro da ética. Mais: quando Cachoeira decidiu que precisava se colocar Demóstenes no Supremo Tribunal Federal como forma de se blindar contra possíveis ações jurídicas, a revista contribuiu com uma entrevista nas páginas amarelas intitulada "Só nos resta o Supremo" em que lançava a candidatura do senador à mais alta corte do país.
Com o silêncio da grande imprensa (apenas a Record e a revista Carta Capital publicaram matérias sobre o assunto), uma das poucas formas de se conseguir informações sobre o assunto foi a internet. O resultado disso foi um movimento pela ética no jornalismo que tomou o Twitter e colocou o escândalo Veja-Cachoeira no trending topics diversas vezes.
Veja contra-atacou argumentando que o manifesto era ilegítimo e que havia sido forjado por robôs programados para retuitar as tags. Chegou a fazer um infográfico mostrando como o perfil @lucy_in_sky era na verdade um robô programado pelo Governo Federal para atingir a revista. Os editores não se deram nem ao trabalho de entrar no perfil ou de tentar contato com a pessoa por trás da conta. Publicada a matéria, foi imediatamente desmentida. O perfil @lucy_in_sky era de uma senhora aposentada de 59 anos que adora ir ao cinema, fazer caminhadas na praia e que não suporta injustiça contra os mais fracos.
Há algo incontestável sobre o jornalismo: ele é baseado em fatos. Se não existe fato, não existe notícia. O jornalista pode escolher os fatos que achar mais interessantes, ou simplesmente dar mais destaque para eles, ou ignorar os que acha que não são interessantes. Mas nunca pode inventar ou forjar um fato. Foi o que a Veja fez ao "provar" que o perfil @lucy_in_sky era um robô: inventou um fato.
Não é a primeira vez que a Veja envereda na ficção. Em maio de 2010 a revista publicou uma declaração do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na matéria "A farra da antropologia oportunista". O cientista veio a público denunciar que não havia sido entrevistado pela revista e, portanto, a citação era falsa. A revista respondeu que a citação havia sido retirada de um dos livros do antropólogo (embora o texto da reportagem desse a entender que o mesmo havia sido entrevistado). Eduardo continuou sem entender: "não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma". Ou seja: a revista simplesmente inventou uma declaração e colocou-a a boca de uma autoridade no assunto como forma de referendar seu ponto de vista.
Apesar da amplitude do escândalo Veja-Cachoeira, a grande mídia se lançou numa campanha para desquallificar a CPMI que investiga o caso e repudia veementemente qualquer possibilidade do editor da Veja ser ouvido.
É triste ver a que ponto chegou o jornalismo brasileiro, mas espera-se que o episódio torne o leitor mais crítico a respeito do papel desse mesmo jornalismo. Talvez o resultado seja uma imprensa melhor.
Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural
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