Família Titã foi uma história em quadrinhos escrita por mim e desenhada pelo Joe Bennett e publicada em diversas revistas da editora Nova Sampa na década de 1990. Eu contei 5 edições diferentes. Com o tempo, virou cult e finalmente foi relançada, no formato de álbum, pela editora Opera Graphica, em maio deste ano. O texto abaixo, um diálogo entre eu e o Joe, deveria constar no álbum, mas acabou não entrando. Nele, nós discutimos como foi o processo criativo e a repercussão da história. Eu tenho exemplares para venda, ao preço de 35 reais já com frete. Quem estiver interessado, basta mandar um e-mail para: profivancarlo@gmail.com.
Gian Danton: Você
lembra como tudo começou? Você recebeu um telefonema do Franco de Rosa pedindo
uma história de 30 páginas, não?
Joe Bennet: Sim, ele
me pediu uma HQ de 30 páginas para fechar uma edição e queria em no máximo 15
dias.
Gian Danton: Isso. O tempo era muito corrido. Tínhamos que
criar algo rápido
Joe Bennett: Sim. Eu na época estava trabalhando somente para
o Franco... a Val era um bebê de meses de idade, precisava fazer grana rápido.
Eu não tinha nada em mente. No caminho pra tua casa eu fui pensando na família Marvel.
Gian Danton: Você
lia muito Família Marvel quando criança?
Joe Bennett: Eu
adorava a Família Marvel!
Gian Danton: O irônico
é que a Família Marvel é a mais infantil dos super-heróis...
Joe Bennett: Sim..mas
estávamos encharcados do Miracleman e fizemos algo muito adulto... Quando eu
fui pra tua casa discutir a empreitada eu só estava com a Família Marvel na
cabeça. Começamos a falar sobre isso, mas com o Miracleman como guia, como
sempre fazíamos. Primeiro nos avacalhávamos, pois sempre fazíamos piadas com
nossas ideias.. Éramos muito críticos de nos mesmos. Aí então, após algumas
horas, parávamos e víamos que a coisa tava séria...rsrsrs
Gian Danton: A gente sempre se divertia muito, especialmnete nas
histórias de terror.
Joe
Bennett: Haha! Verdade!
Gian Danton: Você vivia me
colocando nas histórias, em piadas internas...
Joe Bennett: HAHHAHA! A melhor de todas ainda é a do cara com agorafobia
na PHOBOS (publicada na revista Graphic Sampa) acabou ficando duca aquilo.
Gian Danton: Nessa mesma história
aparece um hospício com o meu nome verdadeiro, Ivan Carlo. Mas voltando para a
Família Titã, você lembra se a gente teve a ideia de transformar a coisa em uma
tragédia grega, ou foi sem querer?
Joe Bennett: Olha cara..na
verdade foi por uma consequência de ideias...a gente foi fazendo... criando, e
quando vimos aquilo estava denso pacas...a solução era somente uma...TRAGÉDIA.
Na verdade..a cena do menage a trois que levou ao final da trama...
Gian
Danton: É, naquela cena fica claro que o Tribuno era um pária no grupo. Aliás,
só colocamos aquela cena porque precisava ter sexo, mas acabou sendo fundamental.
Joe Bennett: Sim...na verdade ela
é fundamental... mas so foi explícita por questões editoriais... Hoje ela
aconteceria, mas de forma velada.
Gian Danton: Engraçado que, apesar
da influência de Miracleman, o caminho que seguimos foi outro...
Joe Bennett: Sim..o
nosso caminho foi até mais realista em nível humano do que o Miracleman. Fomos
ao cerne do ser humano ali.
Gian Danton: Nós abordamos mais a
interação entre eles. Os personagens que eram realistas, tinham motivação...
Joe Bennett: Sim e
eu acho aquela solução do roteiro realista perturbadora...
Gian Danton: Sim, um herói em busca de vingança.
Joe Bennett: Esse
nosso tom realista-humanista foi nos levando ate chegar na Refrão de Bolero, concordas?
Gian Danton: Sim, sem
dúvida. Refrão foi uma consequência da Família Titã.
Joe Bennett: Sim, Exato. Ela foi logo em sequencia à FT.
Gian Danton: Mas
voltando à família, Tribuno é o personagem mais interessante. Ele é heroi e
vilão.
Joe Bennett: Sim. Ele
é o canal pra toda a tragédia..pois já tem um espírito trágico.
Gian Danton: Engraçado
que isso aconteceu por causa da correria. Não tivemos tempo de conversar sobre
isso. Lembro que você fez o rafe rapidinho. Eu escrevi o texto todo em menos de
uma hora.
Joe Bennett: Foi. Eu
fiz o rafe numa tarde e te mostrei na manhã seguinte.
Gian Danton: Tudo foi
muito rápido. No mesmo dia você já estava fazendo a primeira página.
Joe Bennett: Não pensamos em nada além de FAZER... o
original era pequeno 25 x 28 mais ou menos, para economizar tempo.
Gian Danton: E no
final eu achava que o Tribuno era o herói e você achava que ele era o vilão. Acredito que o diferencial do Tribuno é que
ele tinha motivação. Algo que falta em muitas histórias atuais. Os personagens
parecem bonecos sem vida...
Joe Bennett: Sim..eu
tinha esta ideia dele..tanto que sempre o fazia soturno e nos cantos dos
quadros.
Gian Danton: Então
ele tá lá, matando um monte de gente, botando o terror, mas o leitor entende
ele, e até simpatiza com ele.
Joe Bennett: Sim..pois
no texto tu compravas o leitor.. e isso foi ótimo. Eu era o promotor e tu eras
o advogado.
Gian Danton: E no desenho você caprichava nos detalhes
mórbidos...
Joe Bennett: É. A
cena do Paulo preso nos destroços e bebendo gasolina para não morrer deixou até
tu perturbado. Rs RS RS RS RS.
Gian Danton: Aquela cena da Vésper agarrada com a filha, o olhar
de pavor dela é perturbador...
Joe Bennett: Sim..e complementou com tua descrição da morte
da criança..algo que não foi mostrado..mas ali estava tua descrição digna de um
agente da gestapo... rs rs
Gian Danton: Lembrei de uma coisa agora. Essa sequência era a
primeira da história, depois vinha o resto em flash- back. Quando foi publicado
pela primeira vez, inverteram isso e colocaram no final. Essas narrativas não lineares eram típicas da
nossa parceria.
Joe Bennett: Sim..a trama é contada em flashback...isso é,
claro, uma influencia do Moore...
Gian Danton Outra
inovação foi colocar eles morando num lixão.
Joe Bennett: Sim... hoje é cool mostrar isso, tem até novela
no lixão, mas na época, não. Se fossemos bobinhos naquela época faríamos eles
garotos normais, digo, morando em casas normais. Mas não, fomos pelo caminho da
crueza mesmo...
Gian Danton: Falando
sobre os personagens, Centurião e Vésper ainda continuam crianças, mesmo depois
dos poderes...
Joe Bennett: Sim, pois eram infantis mentalmente. Aliás..eram
crianças de 12 a 14 anos na verdade. O Tribuno que por ser letrado, era bem
mais maduro, mas não tanto ao ponto de aceitar que Melissa não o amava... se
bem que pra isso não precisa idade ou intelectualidade... rsrsrs
Gian Danton: Sim, o Tribuno
era um velho em corpo de criança.
Joe Bennett: Sim e
literalmente... já que seu corpo estava morrendo
Gian Danton: Centurião
e vésper são como crianças que ganharam um brinquedo caro e querem curtir esse
brinquedo.
Joe Bennett: Isso
Gian Danton: Tem esse
aspecto também. O Tribuno acha que eles devem usar os poderes para melhorar o
mundo.
Joe Bennett: Sim, e
na minha opinião o César queria ou teria usado este poderes de forma mais
correta com o que lhe propuseram... na verdade o poder era DELE e ele o distribuiu
e por isso a coisa desandou. Ele fez tudo por amor à Melissa.. quando deveria fazer
por amor a humanidade
Gian Danton: O tribuno é tridimensional.
Joe Bennett: Sim. Bastante.
Gian Danton: É um
personagem complexo: humanista, mas egoísta. Interessante também que o amor
dele acaba se transformando em ódio.
Joe Bennett: Na
verdade... o altruísmo dele em distribuir poder foi somente um fisiologismo
para receber o amor da Melissa depois.
Gian Danton: Embora
ele esperasse que ela usasse bem esse poder...
Joe Bennett: O odio
anda em compasso com o amor..tanto que ao final de tudo ele chora por tudo que
fez. Ali ele se redime.
Gian Danton: Só um
deus pode matar um deus.
Joe Bennett: Na minha
opinião ele nao morre no sol.. nada pode matar o que ele possui...
Gian Danton: Deixamos
o final em aberto.
Joe Bennett: Cada um
tem a sua ideia de como termina. Sempre fazíamos isso em nossas HQs. Dávamos margem para discussões depois. Nunca
fechávamos tudo e
isso era algo bom.
Gian Danton: Aliás,
muitos leitores achavam que o Tribuno era herói, outros que ele era vilão. Não
tinha uma interpretação só.
Gian Danton Estava
olhando a história. Acho que é a HQ em que fica mais clara sua influência do
Garcia Lopez.
Joe Bennett: Sim..Garcia
López. Ali eu me soltei neste sentido. Era uma HQ de super-herói. Portanto,
nada mais adequado que emular meu mestre, tanto que esta HQ me levou a
trabalhar nos EUA... mas isso é outra historia...
Gian Danton: Fala um
pouco sobre essa influência.
Joe Bennett: Eu conheci o o mestre Garcia aos meus 8 anos numa
história do Batman. Foi amor à primeira vista. O cara é um mestre! Nunca havia
visto herois sendo desenhados daquele jeito. Durante minha pré-adolescência eu
treinei muito o estilo dele.
Gian Danton: Engraçado que eu sempre fui fã do traço do
Garcia lopez e você sempre foi fã do Alan Moore.... A Família Titã juntou um
roteirista influenciado pelo Alan Moore com um desenhista influenciado pelo
Garcia-Lopez...
Joe Bennett: Pois é, ali juntamos as duas coisas.
Gian Danton: Você
lembra como foram as reações dos leitores?
Joe Bennett: olha.. a
melhor delas foi do Jadson, que na época era leitor e aspirante a quadrinhista.
O Jadson comprou para descascar uma... aí começou a ler e não teve coragem de
proseguir com seu intuito primário... rs rs rsrs... Virou fã da HQ... Aliás,
muita gente comprava para descascar e depois virava fã da dupla.
Gian Danton: Eu
sempre viajo em congressos e eventos e sempre vinha alguém com a Família Titã encadernada
para autografar... O engraçado é que isso foi lançado em revista lacrada, de
fundo de banca, papel jornal...
Joe Bennett: Pois é. Tinha
gente que recortava só a família titã e mandava encadernar.
Gian Danton: Mesmo
sendo erótico, a gente caprichava, não era o sexo pelo sexo...
Joe Bennett: Não acho
que alguém tenha sentido tesão pela INCUBO... rs rs rs rs...
Gian Danton: Lembro de
uma carta do Franco de Rosa nos pedindo para não matar os protagonistas.
Joe Bennett: Há Há Há! Pois é, os leitores compravam por
causa do erotismo e a gente matava os protagonistas. Era quase uma necrofilia
da parte dos leitores... Muitos se sentiam mal...
Gian Danton Se
sentiam mal, mas continuavam comprando.
Joe Bennett: É igual
a um acidente com massa encefálica espalhada no asfalto... todo mundo acha horrível
mas passa devagarzinho ao lado para ver...
Gian Danton: Aí iam
na banca e procuravam as revistas que tivessem a margem negra... Lembro que vc
já usava antes mesmo da nossa parceria. Você já tinha ideia que isso era uma
sacada de marketing?
Joe Bennett: Sim, eu
tinha sim, fazia de proposito, era marca Bene Nascimento na revista.
Gian Danton: E todo
mundo sabia...
Joe Bennett sim. E
compravam por isso também... eu só queria saber quantas vezes a FT foi
republicada...
Gian Danton Eu
contei quatro publicações. Quem curtia comprava a revista mesmo lacrada por
causa da margem negra.
Gian Danton: Sobre
continuações: Eu acho que poderia funcionar como prequel, tem muita brecha ali,
muita coisa que contamos só por alto...
Joe Bennett: Sim, não cabem continuações, mas prequels e enxertos
sim... eles tiveram 10 anos de atividade... ou 15, não me lembro agora... portanto
muita coisa aconteceu. Sem contar os 10 anos de exílo do César, poderoso e
solitário e cada vez mais amargurado com o mundo.
Gian Danton: sim, há brechas aí para muitas histórias. Só isso
já dava uma série.
Joe Bennett: Na época
talvez não tivéssemos vivencia para fazer essas historias... mas hoje a coisa
seria diferente. Fica aqui uma ideia...
Gian Danton: Não tínhamos
vivencia nem mercado.
Joe Bennett: Hoje
continuamos em mercado... rs rs rsrs
Gian Danton: Mas hoje
existem os álbuns para venda em livrarias. O mercado da época era fazer
histórias eróticas para serem publicadas em revistinhas de fundo de banca... Eu
sempre lamentei a família titã nunca ter sido publicada em um formato melhor,
com papel de qualidade...
Joe Bennett: Sim... finalmente,
após quase 25 anos, isso vai acontecer.
Gian Danton: Na verdade, este álbum da FT é um antigo sonhos dos
fãs.
Joe Bennett: E nosso também...
Gian Danton: Muita
gente me cobrava isso.
Joe Bennett: Sim..a
mim também. Eu também me cobrava e hoje me cobro mais historias deles.
Gian Danton: Na época
a chamada de capa era "a insólita família titã".
Joe Bennett: sim
Gian Danton: Não tinha nome dos autores na
capa, ou maior destaque. Era o mesmo destaque das outras histórias.
Joe Bennett: Na
verdade..nem nós nem o Franco sabíamos o que estava em nossas mãos. Poderíamos
ter criado um universo inteiro com herois brasileiros e criveis a partir dali..
Gian Danton: o sucesso
foi aos poucos. O pessoal foi descobrindo a história. Outra coisa que ajudou
foi a internet. Um amigo americano
me disse que alguém traduziu para o inglês e colocou na rede o scans. Infelizmente
esse site deve ter sido derrubado antes de eu achar esse scan.
Joe Bennett: Poxa..que
pena... eu queria ter visto isso.
Gian Danton: Eu
também. Mas isso mostra que até nos EUA tivemos fãs da Família Titã...
Joe Bennett: Pois é.
Aliás, foi graças à Família Titã que consegui trabalhar para os EUA. O Hélcio
de Carvalho leu essa HQ e me convidou para fazer testes paras as editoras
americanas. O resto é história...