Clássico do escritor inglês é uma aula de roteiro
Já vi gente dizendo que queria ser roteirista de quadrinhos,
mas não lia, ou lia apenas quadrinhos e, pior, só lia quadrinhos de
super-heróis, ou só manga. Não é possível escrever, o que quer que seja, com o
mínimo de competência, sem ser um leitor voraz, inclusive de livros.
E, entre todos os livros, existem aqueles que são leitura obrigatória
por terem definido formas de narrativa. Entre eles, Oliver Twist, de Charles
Dickens. O livro foi publicado em capítulos em jornais no ano de 1837, quando o
autor tinha apenas 25 anos reflete a vida do próprio Dickens, cuja família
passou necessidades na época em que seu pai foi preso por dívidas e os filhos
tiveram que trabalhar.
O livro se passa em plena era vitoriana, quando o império
britânico era o maior e mais poderoso do mundo. Mas todo esse poder e riqueza
não se refletia sobre a população, que, em grande parte vivia na miséria. As
péssimas condições de vida da época da são demonstradas na figura de um pequeno
órfão, Oliver Twist, cuja mãe morreu de seu parto e passou a ser criado em um
orfanato onde passava fome e era submetido a maus-tratos. Seguindo a ideologia
científica da época, muitos dizem que Oliver, por ser filho de uma mulher sem
virtudes, se tornará um ladrão e acabará na forca.
Uma das cenas mais antológicas do livro e certamente a de
imagem mais forte, é a do refeitório, no qual as crianças, ao perceberem que
vão morrer de fome, sorteiam um deles para pedir mais sopa (uma papa rala de
cereais com cebola duas vezes por semana). O pequeno órfão é encarcerado e a
reclamação é vista como mais um exemplo de que sua inclinação ao crime o levará
à forca.
Depois disso, Oliver é quase colocado como limpador de
chaminés (um dos trabalhos mais cruéis executados por crianças na época, já que
elas eram descidas de cabeça para baixo e muitas vezes morriam por causa da
fumaça ou do fogo) e acaba como aprendiz de um agente funerário, de onde acaba
fugindo depois de ser vítima de uma armação.
Em sua fuga, o pequeno Oliver acaba indo parar em Londres e
mas garras de um receptador especializado em adestrar crianças na arte do
roubo, Fagin, o judeu (um personagem tão forte que posteriormente Dickens teve
que escrever um texto tentando desfazer o anti-semitismo que o seu romance
involuntariamente provocara).
E, mesmo em meio às desgraças, Oliver mantém-se sempre
honesto e bom.
O livro vale tanto pela denúncia das condições sociais da
época da Inglaterra à época da revolução industrial quanto pela genialidade do
autor em sua narrativa repleta de ironia. Dickens é o mestre absoluto do
recurso, como se observa no trecho a seguir: “Nos primeiros seis meses, após a
mudança de Oliver Twist, o sistema esteve em pleno funcionamento. Foi um pouco dispendioso,
a princípio, em consequência do aumento na conta do agente funerário e da
necessidade de apertar as roupas de todos os indigentes, que flutuavam soltas
nas suas formas encolhidas, mirradas, depois de uma semana ou duas de papas.
Mas o número de inquilinos do asilo tornou-se dessa maneira reduzido; e o
conselho muito se alegrou com esse resultado”.
O esquema de folhetins, precursores das atuais telenovelas,
e dos quadrinhos, já existia, mas Dickens transformou-o em verdadeira
literatura numa trama repleta de reviravoltas e suspense, com um protagonista
ingênuo, mas bom, que se vê envolto por um destino cruel, mas triunfa no final
graças à sua pureza de caráter. Lembra muito a estrutura das telenovelas
clássicas, que lhe devem muito, mas nenhuma telenovela igualou-se a Dickens na
crueza das descrições, nos perfis detalhados dos personagens, na crítica social
e até mesmo no poder narrativo.
A sequência em que um ladrão assassina sua consorte está
entre as páginas mais poderosas já escritas em todos os tempos. Os pequenos gestos,
executados instintivamente, desvelam o conflito interno do personagem de forma
muito mais efetiva que vários tratados de psicologia.
Existem várias versões reduzidas do livro à venda, inclusive
uma da coleção O prazer da leitura, da editora Abril, que foi vendida em bancas
e pode ser facilmente encontrada em sebos. Mas se puder, leia a versão integral
(é possível conseguir em sebos). A necessidade de reduzir o texto faz com que a
maioria das versões condensadas deixe de lado exatamente o que Dickens tem de
melhor: sua fina ironia e as descrições detalhadas de personagens e ações. Mas,
se não encontrar uma versão integral, leia a versão condensada: o livro é uma
aula de como prender o leitor com uma narrativa folhetinesca.
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