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Sofia estremeceu, perdida na
imensidão negra de seus sonhos.
Em seus sonhos, ela sempre
acordava durante a noite. Mas o pesadelo nunca terminava.
Ela acordava e sabia que havia
algo estranho.
Embora não possa ouvir, ela sabe
que há gritos.
(como sabe, como ela sabe dos gritos?)
Então se levantava. Ela não sabia
onde estava sua pantufa, então seus pés experimentam a frieza indiferente do
chão. De alguma forma isso parecia irreal.
(O tempo. O tempo parece estranho)
Ou menos real do que o que está
acontecendo lá fora. Um homem e uma mulher. Seus pais. O que estavam fazendo?
Por que estão gritando?
(Como ela sabe, como ela pode saber da dor e dos
gritos se nunca ouviu nada na vida?)
Sofia dá um passo, seus pés
congelando no contato com o chão, mas pouco importa. Os gritos lá fora agora
estão mais fortes.
Sofia passa pelo ursinho caído no
chão, mas o ignora. Ela quer, precisa saber o que está acontecendo, embora
saiba que é algo terrível.
Suas mãos tocam na maçaneta gelada
e a giram.
E os gritos em sua cabeça se
tornam ainda mais fortes.
Sua mãe está caída no chão.
Seu pai está sobre ela,
segurando-a pela camisa. Ele tem a mão levantada, pronta para um golpe. No
rosto da mãe, em volta do olho, há uma enorme mancha vermelha que vai, aos
poucos se tornando roxa.
Os dois ficam ali naquela posição
no que parece uma eternidade. E então olham para ela.
O pai solta a mãe e vira-se para a
menina, os olhos injetados de sangue e ódio.
Lá atrás, a mãe o puxa pela calça,
implorando. Sofia percebe que a mãe implora por ela.
O homem se livra da mãe com uma
tapa e se volta novamente para a menina.
Sofia corre de volta para o
quarto, o chão frio deslizando rápido sob seus pés e se esconde debaixo da
cama.
Sofia está novamente dormindo. Ela
sempre dorme, sempre acorda, mas o pesadelo nunca acaba.
Novamente os gritos, em sua
cabeça, em seus sonhos. Sofia abre os olhos. Ela tenta afastar o pesadelo, mas
os gritos mudos continuam ali.
Ela se levanta e seus pés tocam o
chão frio e ela estremece. Ela já viveu esse pesadelo dezenas e de vezes e não
sabe mais se é verdade ou imaginação. Na manhã seguinte, parece que tudo está
normal, exceto pelas partes roxas no corpo de sua mãe. Realidade, sonho, tudo
se mistura em sua cabeça juvenil.
Ela continua andando na direção da
porta e pega na maçaneta e a maçaneta a cumprimenta com um toque gelado.
A porta se abre lentamente e Sofia
espera ver a mesma cena que já vira diversas outras vezes.
Mas desta vez é muito, muito pior.
Em seu sonho, Sofia estremece.
A porta se abre lentamente.
O seu pai está ali, como sempre,
batendo em sua mãe, mas agora ela está reagindo. Sofia olha nos olhos dos dois
e é como se estivessem mortos. Ao redor deles, a sala toda está destruída:
coisas caídas no chão, sangue nas paredes, a televisão quebrada em uma miríade
incessante de cacos de vidros.
Inicialmente, Sofia acha que é
apenas mais uma surra, mais uma vez seu pai trazendo a violência para casa, mas
então se lembra do olhar dos dois e percebe que dessa vez é diferente.
Ela corre e se esconde debaixo da
cama. Vê pessoas entrando no quarto, sente a vibração de coisas sendo
quebradas.
(parece que estão procurando por alguma coisa,
procurando por ela!)
Depois vão embora e então é o
silêncio. Apenas isso, o silêncio em sua cabeça, mas a certeza de que os gritos
logo voltarão e ela fica lá, deitada, esperando que o sol entre pela janela e
pareça seguro sair.
Quando finalmente sente coragem,
vê-se no meio do caos de destruição e estremece.
Ela nunca mais irá ver seus pais.
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