domingo, outubro 15, 2017

Arte moderna - muito além da pedra no museu

Recentemente um vídeo circulou na internet e tem sido muito compartilhado. Mais que isso: seu principal argumento tem sido repetido à exaustão: arte moderna é uma pedra no museu.
O vídeo faz uma distinção clara entre os grandes artistas do passado e os modernos, representados pela pedra no museu.
Mas será isso mesmo? Será que a arte moderna se resume a uma pedra no museu?
Para explicar o assunto, são necessárias algumas definições e explicações. A primeira delas é que o vídeo faz uma confusão, juntando em um só saco de gatos muitos movimentos (dadaísmo, surrealismo, arte conteporânea etc e, do outro lado, renascimento, barroco, neo-clássico etc). Mas, para efeito deste artigo, vamos adotar a definição do vídeo. Assim, haveria a arte moderna e arte não-moderna. Para o autor do vídeo, só poderia ser considerado arte realmente a arte não-moderna.
Então o que seria a arte não-moderna, que o autor do vídeo considera a arte verdadeira? É uma arte que compreende essencialmente duas possibilidades artísticas: a pintura de cavalete e esculturas em mármore. Além disso, era uma arte que seguia rígidas de composição e de tema.
Olympia: nudez provou escândalo

Para explicar o que seriam as regras rígidas de temas, vamos pegar um quadro específico, Olympia, obra de Édouard Manet, de 1863. O quadro foi recusado pelo salão de Paris, foi exposto no salão dos recusados e causou enorme polêmica e escândalo. O quadro mostrava uma prostituta nua deitada na cama. Mas, se há muito tempo o nu já era representado na arte, por que um quadro com nu provocou escândalo? É que na arte não-moderna o nu era aceito desde que fosse com deuses gregos, figuras históricas. Um deus grego ser representado nu era algo normal e até edificante (A arte representava sempre temas considerados edificantes: mitologia grega, história romana, passagens bíblicas). Mas uma mulher normal, e, pior, uma prostituta, era algo inaceitável. Por conta de toda a polêmica envolvendo o quadro, Olympia pode ser considerada a obra fundadora da arte moderna.
A arte moderna, a partir daí, quebrou as regras rígidas de composição e de temas e de suporte. Para ser arte não era necessário representar deuses gregos ou figuras históricas. A arte não precisava ser edificante. Também não era necessário que a obra fosse uma pintura de cavalete ou um escultura feita em mármore.
Feita essa observação, vamos fazer um pequeno tour de arte moderna que vai muito além da pedra no museu. Deixo por conta do leitor a decisão sobre ser arte ou não.

Art nouveau – movimento artístico que foi revolucionado ao mostrar que a arte não era apenas o que estava no museu. Ou algo contemplativo. Você poderia pegar na arte e até usar a arte. O art nouveau podia ser visto na decoração interna das casas, na arquitetura, nos objetos de uso pessoal e até em cartazes, como os anúncios dos espetáculos de Sarah Bernhardt realizados por Alphonse Mucha.

O gabinete do Doutor Caligari, filme de 1919, de Robert Wiene. O filme retrata uma história contada por um louco. Os cenários distorcidos refletiam a mente conturbada do protagonista. Não era um tema edificante, como se esperava de uma obra não-moderna. Os cenários também não seguiam os padrões rígidos de composição. E, principalmente, era cinema, e não pintura de cavalete ou escultura em mármore. Segundo os padrões da arte não-moderna não poderia de forma alguma ser considerado arte.

Salvador Dali pintava em cavalete, mas seus quadros surreais passavam longe de seguir as regras de composição e tema da arte não-moderna. Não era uma pintura edificante, mas reflexos de sonhos. Além disso, em uma de suas obras, ele compôs o rosto de Marilin Monroe com uma estrutura em que o visitante poderia entrar e se sentar em uma poltrona, interagindo com a obra. Passava longe de ser considerado arte pelos padrões da arte não-moderna.

Poty Lazzarotto é um pintor e escultor paranaense. Suas esculturas eram feitas em concreto e raramente ele pintava em cavalete, preferindo grandes painéis, como produzido para o aeroporto de Curitiba. Além disso, suas figuras não seguiam o padrão rígido de composição e anatomia da arte não-moderna, com figuras muitas vezes distorcidas. Também não poderia ser considerado arte.

Vik Muniz – esse artista brasileiro reconstrói obras de arte clássicas usando lixo. Sim, lixo. A obra é realizada em um grande galpão e depois fotografada. O que vai para as galerias são as fotos das mesmas. Embora reproduzam pinturas clássicas, não poderia ser considerado arte de acordo com os padrões da arte não-moderna, em especial em decorrência do suporte.

Ron Mueck – Esse artista australiano usa os mais diversos tipos de materiais, inclusive cabelo humano, para produzir suas obras em tamanho gigantesco ou minúsculo. Seus temas não são edificantes. Ao contrário: mostram pessoas normais, com seus defeitos muitas vezes destacados, com varizes, unhas encravadas e gorduras localizadas. Uma de suas obras é uma galinha morta pendurada no teto. Não poderia ser considerado arte por conta do material utilizado e dos temas abordados.

Orson Welles – Considerado o maior cineasta de todos os tempos. Seu filme Cidadão kane mergulhou fundo na vida e na personalidade de um magnata da imprensa em cenas com profundidade de campo, em que o que estava atrás tinha função fundamental no que era dito em primeiro plano. Na década de 1970, ao dirigir um filme sobre um homem que falsificava obras de arte, promoveu uma profunda reflexão sobre a autenticidade da arte. Era cinema, portanto, não era arte.

Alan Moore – esse britânico é cineasta, faz performances musicais, escreve peças de teatro e escreve quadrinhos. Entre suas obras mais famosas estão V de Vingança e Watchmen. Ele não desenha pinturas de cavaletes ou produz esculturas de mármore. Na verdade, ele desenhou muito pouco, sendo a maior parte de suas obras realizadas com ilustrações de outros artistas. Seus temas também não são edificantes. E são quadrinhos. Não seria considerado arte por qualquer critério da arte não-moderna.

José Loures – Uma das características da arte moderna é a possibilidade de interação com a obra. O público não é apenas um receptor passivo, que fica contemplando a obra a uma distância demarcada com linha vermelha no chão, como ocorria na arte não-moderna. Esse artista de Anápolis faz obras de game arte, em que o visitante não só interage com a obra, mas joga com ela, como num jogo de tabuleiro. Não poderia ser considerado arte sob qualquer prisma de acordo com os padrões da arte não-moderna.

Esses são alguns exemplos que vão muito além da pedra no museu. Nenhum deles seria considerado arte a partir dos padrões da arte não-moderna (pintura de cavalete ou escultura em mármore, temas edificantes, receptor passivo, composição rígida). Se são arte ou não, deixo a decisão ao leitor.  

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