domingo, outubro 15, 2017

Contadores de histórias


No livro O Macaco Nu, o biólogo e antropólogo Desmond Morris apresenta uma teoria no mínimo inquietante. Para ele, em certo momento da evolução, tornou-se mais importante usar o cérebro que os músculos na guerra pela sobrevivência. A criação de novas tecnologias e o aprendizado das mesmas tornou-se essencial (Quando falo em tecnologia, uso o sentido amplo da palavra, como qualquer processo que facilite ao ser humano o seu trabalho, obtendo melhores resultados com menor esforço. A roda ou a alavanca são exemplos de tecnologias utilizadas pelos nossos antepassados mais remotos).
Essa nova conjuntura criou um problema: como repassar essa nova tecnologia para as novas gerações, e, ao mesmo tempo, incentivá-las a aperfeiçoar essas mesmas tecnologias? Morris lembra que os macacos e chimpanzés novos são curiosos e criativos, mas essa fase passa rápido, estendendo-se apenas por uma breve infância. A solução encontrada foi prolongar a infância. Essa é a razão pela qual nós, ao contrário da maioria dos animais, levamos um longo tempo para obter autonomia. Um cavalo recém-nascido já consegue andar, um bebê humano recém-nascido é uma bolinha frágil, dependente de seus pais para tudo. O nosso cérebro continua a crescer até nove ou dez anos depois de adquirirmos nossa maturidade sexual. No chimpanzé esse processo de crescimento do cérebro se completa seis ou sete anos antes da maturidade sexual.
O que ganhamos com esse longo processo de evolução cerebral que compensasse a necessidade de dependermos de nossos progenitores até idade avançada? Simples, tivemos mais tempo para aprender. E não só isso. Tivemos mais tempo também para experimentar, criar, imaginar, sonhar. Dificilmente alguém consideraria descabida a afirmação de que as grandes inovações da humanidade vieram sempre da parte de jovens. A curiosidade e criatividade infantil têm sido o motor de nossa espécie.
As inovações trazidas pelas novas gerações em termos de comportamento e tecnologias foram de tal forma bruscas que acabaram gerando um fenômeno interessante, que não existe em nenhuma outra espécie: o conflito de gerações. Há um cartum curioso sobre o assunto. Nele vemos dois trogloditas idosos sentados em cadeiras de balanço na varanda de suas cavernas. Eles observam dois jovens trogloditas passarem com seus arco e flechas e comentam, com um não disfarçado desdém: “Olhe só para isso! Bons tempos aqueles em que os homens carregavam um tacape e tinham o cérebro do tamanho de uma castanha”. O cartum sugere que o conflito entre as gerações é tão velho quanto a tecnologia, o que provavelmente é um palpite certo. 
Algo, no entanto, que me chama atenção nessa perspectiva é como os jovens e crianças teriam sido estimulados para usar sua imaginação e criatividade. Claro, é praticamente impossível verificar como se desenrolou esse processo, mas penso que os contadores de histórias tiveram grande importância nele. Nas noites frias, reunidos ao redor da fogueira, os jovens e crianças deveriam deixar a imaginação voar escutando as histórias contadas por um dos sábios da aldeia. 
Contar ou ouvir histórias é um exercício inestimável de criatividade. As histórias não são limitadas pela lógica cartesiana, ou pela realidade que nos cerca. Nas histórias um lobo pode se disfarçar de vovó, os bichos podem falar, bonecos de madeira tomam vida... As histórias têm sua própria lógica, sua própria sintaxe. Elas exercitam em nós aquele tipo de pensamento divergente que não se encaixa nos quadradinhos das provas de vestibular, no qual apenas uma resposta é a certa. Hoje se sabe que as grandes soluções vêm de uma lógica que parece absurda. Na história da ciência são incontáveis os casos de grandes descobertas que eram grandes descobertas justamente porque contradiziam toda a lógica de sua época. E no caso das artes isso é ainda mais verdadeiro, assim como no caso da tecnologia.
Assim, as histórias exercitam em nós a criatividade, abrindo caminho para que encontremos soluções em nossa vida prática. Vou citar um único exemplo, o escritor francês Júlio Verne. São incontáveis os cientistas, técnicos ou inventores que passaram a infância e a adolescência devorando livros de Verne. O nosso Santos Dumond tinha os livros dele entre os seus prediletos.
E quando falo de histórias, não me refiro apenas à literatura. Falo das histórias contadas de avô para neto, das histórias em quadrinhos, dos filmes, dos seriados de TV, de todos os meios que as narrativas encontram para se difundir. Assim, todos esses contadores ganham uma importância insuspeita. Foi graças a eles, às suas fantasias, que o ser humano evoluiu para o que é hoje. E se evoluirmos mais, ao invés de nos afundarmos em nossa própria ganância, isso também se deverá, em grande parte,  às histórias. E aos seus contadores, evidentemente.

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