Escrito em 1939, “O caso dos dez negrinhos” está, sem sombra
de dúvida, entre o melhor de Agatha Christie. Uma história tão boa que acabou
sendo adaptada ou simplesmente imitada dezenas de vezes, de filmes a episódios
de “Uma família da pesada”. Publicado dezenas de vezes, teve seu título mudado
para “E não sobrou nenhum” para atender ao politicamente correto, mas continua
fazendo enorme sucesso e sendo a demonstração cabal da habilidade de sua autora
em construir tramas.
Nascida em 1891, Ann Miller (seu nome verdadeiro) não
parecia destinada à literatura. Queria ser cantora, foi enfermeira na I Guerra
Mundial. Quando terminou a guerra, discutiu com a irmã, que afirmava que ela
seria incapaz de escrever um romance policial. O resultado dessa disputada foi
“O misterioso caso de Styles”, o primeiro livro de Hércule Poirot, seu
personagem mais famoso. Foi rejeitado por seis editoras. Quando a sétima
aceitou publicá-la, foi um sucesso mediano. O sucesso real só veio em 1926, com
“O assassinato de Roger Ackroyd”. Agatha escreveu dezenas romances e inúmeros
contos. Seu estilo seguia fielmente o lema de Edgar Alan Poe: primeiro pensava
no final, e só depois começava a escrever. Segundo o Guiness, é a romancista
mais bem sucedida da história da literatura popular mundial considerando-se o
número total de livros vendidos: quatro bilhões de cópias.
O caso dos dez negrinhos conta a história de dez pessoas
reunidas em uma ilha (a ilha do negro, devido a uma rocha que se parece com a
cabeça de um negro) e que vão sendo mortas uma a uma. Sim, você já viu algo
assim. A ideia é tão genial que já em 1945 foi transposta para o cinema, sob a
competente direção do francês René Clair, então exilado nos EUA. O título foi
modificado para “O vingador invisível”, provavelmente para fugir das acusações
de racismo que pesavam sobre o título original. Aliás, nos Estados Unidos o
livro foi publicado sob o título de “O caso dos dez indiozinhos”, como se o
novo título não fosse igualmente racista, ou até mais, já que não tem relação
nenhuma com a canção infantil inglesa, que deu origem ao romance:
Dez negrinhos vão jantar enquanto não chove;
Um deles se engasgou e então ficaram nove.
Nove negrinhos sem dormir: não é biscoito!
Um deles cai no sono, e então ficaram oito.
Oito negrinhos vão a Devon de charrete;
Um não quis mais voltar, e então ficaram sete.
Sete negrinhos vão rachar lenha, mas eis
Que um deles se corta, e então ficaram seis.
Seis negrinhos de uma colmeia fazem brinco;
A um pica uma abelha, e então ficaram cinco.
Cinco negrinhos no foro, a tomar os ares;
Um ali foi julgado, e então ficaram dois pares.
Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez
O arenque defumado, e então ficaram três.
Três negrinhos passeando no Zoo. E depois?
O urso abraçou um, e então ficaram dois.
Dois negrinhos brincando ao sol, sem medo algum;
Um deles se queimou, e então ficou só um.
Um negrinho aqui está a sós, apenas um;
Ele então se enforcou, e não ficou nenhum.
A genialidade da autora na elaboração do livro é
impressionante – e difícil dizer qual aspecto é o mais relevante.
Primeiro, claro, por construir uma história em que os
assassinatos ocorrem em um local relativamente pequeno, fechado e ainda assim
manter o suspense até o último momento, jogando com as suspeitas do leitor e
dos próprios personagens (essa situação foi levada ao extremo numa sátira da
MAD sobre histórias policiais em que um escritor prometia escrever a respeito
de “assassinatos numa prancha de surf”).
Segundo, por construir toda a história a partir da canção
infantil, de modo que os assassinatos vão seguindo, rigidamente, a ordem e a
contextualização dos versos. Há o jantar, a chuva, a primeira morte com um
suposto engasgo, a segunda morte enquanto a pessoa dorme e assim por diante. Aí
não se trata só da habilidade de construir a trama a partir de algo anterior,
mas de fazer isso de modo que o leitor, embora conheça os versos, não consiga adivinhar
o rumo dos acontecimentos.
E, finalmente, pela fina construção dos personagens. Aliás,
o romance inicia exatamente pela apresentação dos mesmos. Cada um está a
caminho da ilha e são mostrados com seus pensamentos, suas histórias, suas
angústias e defeitos.
Temos um severo juiz, que talvez tenha ajudado a condenar um
homem inocente, uma velha e antipática solteirona, que pode ter sido
responsável pelo suicídio de uma moça, um médico, que, ao operar alcoolizado,
teria provocado a morte de uma paciente, um homem irrefreável que, ao abandonar
um grupo de africanos, teria os condenado à morte, um general que enviou para a
morte o amante de sua esposa, um detetive da polícia que, com seu falso
testemunho, condenou um homem à cadeia, um playboy que atropelou dois garotos,
mas escapou impune, dois criados que, por omissão provocaram a morte de uma
senhora idosa... e, provavelmente, a mais complexa personagem de toda a
história, a bonita professora Vera Claythorne. Ela é de longe o personagem mais
interessante de toda a trama – tanto Agatha gasta páginas e páginas
desenvolvendo-a. Se alguns são caracterizados logo de cara (o playboy
inconsequente, por exemplo, ou a solteirona amarga), a jovem vai sendo
descoberta aos poucos para o leitor, que inicialmente a vê como inocente –
talvez a única ali, mas vai aos poucos descobrindo seu outro lado.
Essas pessoas são reunidas numa ilha, sob diversos pretextos
por um tal senhor Owen e, logo na primeira noite, são surpreendidos por uma voz
que os acusa de terem sido responsáveis pelos crimes descritos acima, todos
eles casos que não há como se provar e, portanto, impossíveis de serem levados
a julgamento.
Esse juiz secreto vai matando um a um e, a cada um que
morre, um dos negrinhos sobre a mesa central da sala desaparece. Logo fica
claro que o assassino só pode ser um deles. E, quando todas as provas parecem
apontar para determinada pessoa, ela morre.
Agatha transforma todos os seus personagens em detetives e,
ao mesmo tempo, em supostos assassinos. Manejar algo assim é algo que só um
autor extremamente habilidoso conseguiria.
Em suma: o melhor do romance policial.
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