A primeira coisa a se
dizer sobre Um estranho numa terra estranha é que é impossível fazer uma
resenha do mesmo sem contar boa parte da história (a não ser que seja um texto
apenas com frases genéricas). Portanto, se você não gosta de spoiller, pare
aqui mesmo.
Dito isso, vamos aos
fatos. Heinlein era um escritor de livros juvenis de FC e pretendia escrever um
livro adulto. A sugestão de tema veio de sua esposa Virginía: que tal uma versão
ficção científica de Mogli, tendo, no lugar de um menino criado por lobos, um
humano criado por seres extraterrestres? Heinlein percebeu que esse mote lhe
permitiria avançar muito além de questões juvenis. Alguém criado em outro
planeta teria uma visão de mundo completamente diferente dos terráqueos, o que
lhe permitiria discutir muitos temas: filosofia, sexo, religião, tabus,
comportamentos.
A história ganhou
corpo quando o autor soube dos manuscritos coptas do século 2, com evangelhos
da heresia gnóstica. Um dos principais autores da gnose era Valentino de
Alexandria. Assim, o protagonista ganhou nome: Valentine Michael Smith (ele será
normalmente chamado de Mike na maioria das vezes). O título, até então era o
Herético.
Henlein levou mais de
10 anos para escrever sua obra e só resolveu lançá-la quando percebeu que a
censura aos livros nos EUA havia afrouxado.
Quando publicado, o
livro fez sucesso mediano, mas se tornou um best-seller quando foi redescoberto
pelos hippies no final da década de 1960, tornando-se um dos principais livros
do movimento.
O início do livro é tão
divertido quanto uma dor de dente. A narrativa se concentra na fuga do hospital
onde o garoto de marte estava incomunicável e nas tratativas com o governo no
sentido e garantir sua segurança e liberdade. Em meio a essa trama de
pseudo-espionagem e negociações, só o que salva é a figura de Jubal, um
advogado-médico-escritor que adota o garoto de marte e negocia por ele. Jubal é
uma das figuras mais carismáticas da literatura de ficção científica. Velho,
ranzina, irônico, cínico, vive em uma casa cercado por lindas secretárias. Ele é
o ponto filosófico da trama. Muito antes que o Homem de marte comece a colocar
em dúvidas a filosofia, religião e tabus humanos, Jubal já o faz com sua lógica
certeira e desconcertante.
Uma vez livre, Mike e
a enfermeira que o salvou, Jill irão percorrer os EUA em um verdadeiro road movie.
Mike, por exemplo, usa seus poderes de telecinésia para trabalhar em um circo
como mágico, mas o número não faz sucesso porque, embora os truques sejam bons
demais, ele não entende da psicologia humana. Isso o leva a devorar livros e se
interessar por religiões.
Quando finalmente
consegue grokar em plenitude, Mike monta sua própria igreja.
Abre parêteses
O livro introduziu
diversas palavras “marcianas”, a mais famosa delas foi grokar, tão popular que
chegou a ser dicionarizada.
Fecha parêteses
Um estranho em uma
terra estranha é, portanto, a trajetória do personagem, tentando entender a
humanidade, a si mesmo.
É uma obra mais focada
em discutir questões filosóficas do que realmente contar uma trama (embora ela
exista), com longas discussões entre os personagens sobre os mais variados
aspectos da existência, em especial as religiões. Como o foco é este, há poucas
descrições, ou mesmo trechos narrativos.
Vendo o que ocorreu na
década de 1970, com o movimento hippie e seus gurus, é impressionante como o livro
de Heinlein antecipou tudo – ou talvez tenha influenciado os acontecimentos. O
livro ficou tão famoso entre os hippies, que era muito comum pessoas invadirem
a casa de Heinlein querendo compartilhar água (para desgosto do autor, que
nunca quis ser um guru).
Aqui vale mais uma discussão,
sobre se a arte antecipa o futuro ou cria o futuro, que bem poderia estar
presente no livro.
Em suma, não leia Um
estranho em uma terra estranha esperando encontrar uma narrativa convencional,
uma trama, ou mesmo uma mensagem. Este é, acima de tudo, um livro que sucita
perguntas e questionamentos – e que nos deixa olhando para o nada após lê-lo.
Grokou?
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