Na segunda metade da década de 1980, os comics americanos foram
sacudidos por uma geração de quadrinistas britânicos. Vários artistas, entre
desenhistas e roteiristas invadiram a DC Comics e, embora trabalhassem com
personagens menores, fizeram com que eles vendessem tão bem quanto as maiores
estrelas da casa, como Batman e Superman. Entre esses artistas, dois se destacaram:
Alan Moore e Neil Gaiman.
Alan Moore pegou o título do Monstro do Pântano, em vias de ser
cancelado e o transformou numa revista respeitada, ganhadora dos mais diversos
prêmios. Depois escreveu Watchmen, uma das mais revolucionários histórias de
super-heróis de todos os tempos. O sucesso de seu trabalho fez com que ele
retomasse a série V de Vingança, publicando-a pela DC Comics.
Neil Gaiman passou de fã a companheiro de Alan Moore. Inicialmente
um jornalista especializado em quadrinhos, ele aproveitou a visita dos editores
da DC à Inglaterra para mostrar seu trabalho em conjunto com o amigo Dave
Mckean. Para isso, ele escolheu uma personagem obscura da década de 1970, que
não interessava a nenhum artista famoso na época: a Orquídea Negra. A minissérie
de luxo Orquídea Negra se tornaria um sucesso e revolucionaria o mercado com
sua arte fotográfica e texto poético, mas antes que fosse publicada, os
editores sugeriram que Gaiman escrevesse um título mensal. Gaiman começou então
sua carreira em Sandman, sendo Dave Mckean responsável pelas memoráveis capas. A
primeira seqüência delas mostrava uma prateleira de madeira na qual o artista
juntava cacarecos, desenhos e colagens. Ninguém nunca tinha visto aquilo numa
história em quadrinhos e muitos certamente compraram Sandman pela primeira vez
por causa das capas. Mas o que fez com que eles continuassem a comprar foi o
texto excelente de Gaiman.
Em Orquídea Negra e Sandman, Neil Gaiman elevou os quadrinhos a um
nível literário poucas vezes alcançado. Qualquer um que botasse os olhos
naqueles gibis sabia que estava diante de um grande escritor. O autor trazia
conceitos, técnicas e abordagem da literatura, fazendo com que intelectuais se
tornassem fãs de Sandman. Até mesmo as mulheres, que normalmente são avessas aos
comics americanos, acabaram se rendendo a Sadman. Nas filas de autógrafos,
especialmente no Brasil, havia geralmente mais mulheres que homens.
Uma pergunta que todos faziam na época é: como se sairiam esses
artistas em um trabalho realmente literário? Alan Moore respondeu a essa
questão com o romance A voz do fogo (lançado no Brasil pela editora Conrad), um
trabalho denso, pesado, até de difícil leitura, uma daquelas obras que permite
várias e várias interpretações.
A resposta de Neil Gaiman foi Lugar Nenhum, romance escrito em
1996 e lançado recentemente pela Conrad.
Lugar Nenhum é adaptação de uma série de TV escrita por Gaiman
para o canal britânico BBC. O personagem principal é Richard Mayhew, um jovem
escocês que vive vida normal em Londres. Tem um bom emprego, mas meio chato, e
namora uma garota ideal, embora meio chata.
Mas um dia ele encontra uma garota ferida na rua e, após
socorrê-la, sua vida muda completamente. Seus colegas e até sua namorada o
ignoram, como se ele não existisse, seu apartamento é alugado para estranhos.
Ele não consegue nem mesmo pegar um táxi. É que ele passou a fazer parte da
Londres de Baixo, onde vivem os tipos mais excêntricos: assassinos letrados,
monges negros, nobres decadentes, falantes de ratês e muitos outros. Agora,
para recuperar sua vida de volta, Richard precisa ajudar Door, a garota
esfaqueada, a descobrir quem matou sua família.
Como se vê, Gaiman preferiu, em seu primeiro romance, seguir a
mesma linha fantástica que o caracterizou em Sadman. Ele decidiu pisar em
terreno conhecido e que domina como ninguém. Vale lembrar que muitos afirmam
que Harry Potter é uma cópia de Livros da Magia, obra em quadrinhos escrita por
Neil Gaiman.
Se em Sandam e Orquídea Negra, Gaiman trouxe para os quadrinhos
técnicas e temas literários, em Lugar Nenhum ele faz o caminho inverso. Trouxe
para a literatura os avanços alcançados por ele nos quadrinhos. As semelhanças
narrativas são óbvias. Quando a namorada dá o fora em Richard, ele vai para
casa e o texto narra: ¨ele tomou um demorado e quente banho de banheira, comeu
alguns sanduíches e bebeu várias xícaras de chá. Viu um pouco de TV, à tarde, e
ensaiou conversas com Jéssica em sua cabeça. Ao término de cada diálogo
imaginário, eles se abraçavam e faziam sexo de um jeito selvagem, apaixonado,
furioso, cheio de lágrimas, e tudo ficava bem¨. Em Sandman 17, na história
Calliope, Gaiman escreveu: ¨E Madoc levou Calliope para sua casa, e trancou-a
no quarto mais alto, que havia preparado para ela. Seu primeiro ato foi
violentá-la, na velha e mofada cama de armar. Ela nem mesmo é humana, ele disse
a si mesmo. Ela tem milhares de anos de idade. Mas sua carne era quente, e seu
hálito doce, e ela segurava as lágrimas como uma criança enquanto ele a feria¨.
Está ali, também, em Lugar Nenhum, os pequenos contos em meio às
histórias maiores, que caracterizavam o roteiros de Gaiman. Em Lugar Nenhum acompanhamos, por exemplo, a
história de Anaesthesia, uma garota que acompanha Richard pelo perigoso caminho
até o Mercado Flutuante, onde ele deverá se encontrar com Door. A mãe de
Anaesthesia ficou louca e ela foi mandada para morar com uma tia, que morava
com um homem: ¨Ele me machucava. Fazia outras coisas também. No fim, eu contei
pra minha tia e ela começou a me bater. Disse que eu estava mentindo. Disse que
ia me entregar para a polícia. Mas eu não estava mentindo. Então eu fugi. Era
meu aniversário¨. Com o tempo a menina foi se tornando invisível às pessoas e
um dia, quando acordou, fazia parte da Londres-de-baixo.
A história da menina mostra a preocupação de Gaiman de construir
um perfil até mesmo para os personagens menores. Cada um tem sua história de
vida, sua personalidade e até seus cacoetes. As descrições detalhadas fazem com
que, com o tempo, o leitor comece a ver essa outra Londres como um mundo ainda
mais real do que aquele em que vivemos. São poucos os escritores que conseguem
nos mergulhar assim em um mundo construído por eles.
Os que não iniciados no mundo das resenhas talvez não saibam, mas
a maioria dos resenhistas lêem os livros com olhares críticos, analisando
estilos, tramas e tudo o mais com um lupa racional. Confesso que houve um
determinado ponto em Lugar Nenhum que foi impossível continuar fazendo isso, de
tal forma a história era envolvente. O mesmo deve acontecer com um leitor comum
desde os primeiros capítulos.
Se não bastassem os méritos literários, a Conrad (que publica os
encadernados de Sandman) fez um ótimo trabalho editorial, ressaltado pela ótima
capa de Dave Mckean (que os editores tiveram o bom-senso de preservar).
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