domingo, julho 07, 2019

Alceu Penna e as garotas do Brasil



O escritor Gonçalo Júnior tem se destacado como o grande cronista da história da imprensa nacional. Seu livro A guerra dos gibis (Companhia das Letras, 2004) tornou-se ponto de referência fundamental para qualquer um que queira entender a formação editorial brasileira. Esse resgate tem continuado em outras como O Homem Abril (Opera Graphica, 2005), Maria Erótica e o clamor do Sexo (Kalako, 2010) e agora em Alceu Penna e as garotas do Brasil, lançado recentemente pela editora Amarilys.
O autor tem contado a história das publicações e editoras através de um ou mais de seus protagonistas. No livro em questão, o foco da narrativa é o desenhista Alceu Penna, autor de uma das mais importantes e influentes colunas da revista O Cruzeiro.
Hoje é difícil imaginar que uma publicação impressa tivesse tanto impacto na sociedade como foi o caso da Cruzeiro. A revista tinha uma tiragem média de 500 mil exemplares semanais na década de 1950. Segundo Gonçalo Júnior, o impacto era equivalente ao que temos hoje em programas como o Fantástico: “Aparecer em suas páginas – de modo positivo ou negativo – portanto, implicava notoriedade instantânea”.
Numa época em que a televisão ainda estava engatinhando no Brasil, a revista influenciava o jeito de pensar, agir e até de se vestir da população brasileira e nesse ponto, o impacto da produção de Alceu em sua coluna As garotas do Brasil foi enorme: “Alceu Penna foi o criador da garota-padrão do Rio, do ideal de beleza que correria o mundo muito antes de Tom Jobim e Vinícius de Moraes comporem  ‘Garota de Ipanema’”.

Essas garotas prenunciaram, pregaram e difundiram, no período de 1938 a 1964, as tendências de liberdade, independência e emancipação da mulher ocidental. A brasileira só conseguiria o direito de trabalhar fora sem autorização do pai ou do marido em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, mas muito antes disso, já eram independente na coluna de Alceu. Eram mulheres chiques, elegantes, sedentas de aventura e liberdade. Segundo Gonçalo, o desenhista fez de sua coluna um panfleto de emancipação feminina, com sugestões de como explorar todas as formas possíveis de liberdade num país de tradição machista.
O livro foi escrito graças à ajuda de Tereza Penna, irmã do artista, que franqueou ao autor toda uma muito bem organizada biblioteca inclusive com desenhos inéditos – um dos pontos interessantes do livro é justamente a comparação entre os desenhos iniciais, mais desinibidos e a versão mais comportada exigida por editores e proprietários de empresas que encomendavam os trabalhos.
A sensualidade, aliás, já era destacada por Alceu desde o colégio, quando o garoto comportado fazia desenhos eróticos que eram muito admirados pelos colegas. Conta-se que uma vez um amigo o advertiu que ele seria expulso se o padre que estava lecionando naquele momento visse o desenho que ele fazia. “Relaxa”, respondeu Alceu “Quando ele chegar aqui a garota já estará vestida”.
Apesar desse início libidinoso, Alceu nunca levou seu traço para a pornografia. O erotismo de suas mulheres era elegante e refinado, o que foi, em grande parte, causa do seu grande sucesso na sociedade carioca da primeira metade do século XX. E, provavelmente, foi o que fez com que ele conseguisse um lugar de destaque numa das principais revistas da época, O Cruzeiro.
A revista surgira com a proposta de ser grandiosa e de revolucionar o mercado editorial brasileiro. A campanha de lançamento tinha o objetivo de mostrar essa grandiosidade. Em pleno calor de dezembro o dono da publicação, o empresário Assis Chateaubriand inventou de dar um efeito visual de que estava nevando. Foram jogados do alto dos prédios quatro milhões de folhetos. Os motoristas buzinavam, como se fosse carnaval, e a maioria das pessoas se abaixou para ver o que dizia o papel impresso. Todos eles traziam a mesma mensagem: “Compre amanhã O Cruzeiro, em todos os jornaleiros, a revista contemporânea dos arranha-céus”.

O primeiro número era chique, com o close de uma linda mulher fazendo biquinho com olhar sensual. Era impressa em quatro cores sob fundo prata com o título em vermelho ao lado do cruzeiro do sul em branco.
Impressionou num primeiro momento, mas foi perdendo leitores e já estava para fechar as portas quando Alceu Penna compareceu à redação com seus desenhos. Na época, a revista passava pela primeira reformulação, realizada pelo jornalista Accioly Netto e o mesmo que se encantou com o desenho de Alceu e o contratou.
Ao assumir a revista, Accioly descobriu que a administração era amadora e ineficiente, a redação era um caos: não havia dinheiro para fazer a revista, nem anunciantes. A maioria dos colaboradores nem entregavam mais seus trabalhos em decorrência dos atrasos nos pagamentos.
Accioly abriu a página da revista para reportagens e coberturas de eventos como o carnaval e desfiles, onde eram conseguidas fotos a baixo custo – na maioria das vezes de graça – que embelezavam as páginas da revista. Havia até uma coluna de um suposto correspondente em Hollywood, que na verdade era escrita por Accioly que usava fotos e informações fornecidas pelas distribuidoras interessadas em promover seus filmes.

Um dos grandes sucessos da renovação foi o destaque dado à moda e ao universo feminino. Sabedor de que boa parte do público leitor era composto por mulheres, Accioly investiu em colunas para elas – a mais famosa dela seria “As garotas do Brasil”, assinada por Alceu Penna, que daria o tom da moda usada por mulheres no Brasil em pelo menos duas décadas, a ponto das garotas recortarem páginas da revista e levarem para costureiras copiarem os modelos.
A trajetória dos dois, revista e artista é acompanhada passo a passo por Gonçalo, até mesmo nos seus momentos mais embaraçosos, como na relação conflituosa de Alceu com inescrupuloso repórter David Nasser.
Com seu texto fluído, Gonçalo Júnior consegue prender a atenção do leitor para a história de um desenhista injustamente esquecido pelos leitores atuais.
De negativo mesmo, só o formato o livro. Vertical, ele dificulta o manuseio, o armazenamento e ainda dá pouco destaque para algumas das obras de Alceu impressas no livro, em especial os quadrinhos, que precisam de uma lupa para serem lidos.

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