A forma diz respeito à abordagem textual escolhida pelo roteirista |
Chegamos à parte mais
complexa do mister de quadrinhos: a forma. Nove em cada dez pessoas não tem a
menor noção do que seja a forma num texto. Se perguntarmos a alguém o que achou
da história, essa pessoa provavelmente se restringirá a fazer comentários sobre
o enredo: "E aí tinha um monte de terroristas e o Batman chegou e deu
porrada neles...". Provavelmente, se perguntarmos para essa mesma pessoa o
que achou dos diálogos, ela fará cara de boba: "Como assim, tinha
diálogos?".
A questão da forma
está intimamente relacionada com o estilo, embora o estilo de um autor possa
envolver diversas formas (por exemplo, a forma de Watchmen é bem diferente da forma de V de Vingança, embora ambas sejam obras do mesmo autor, Alan
Moore).
Partindo do
princípio de que esse é um assunto difícil para o leigo, limitarei meus
comentários apenas a dois aspectos: o texto e os diálogos.
O
TEXTO, ou legenda, é um recurso comumente utilizado pela maioria
dos bons autores. Ele geralmente aparece nas histórias em balões quadrados, chamados de
recordatários. Pessoalmente, não gosto desse nome, pois ele lembra uma época em
que a única função do texto era explicar a sequência, ou mesmo o quadrinho para
o leitor. Usava-se o recordatário para dizer coisas como "Enquanto
isso", "Em outro lugar". "Algum tempo depois",
"Flash dá um soco em Ming".
Depois descobriu-se
que o leitor não precisava que se lhe explicasse a cena (e devemos isso em
grande parte ao trabalho de Will Eisner no Spirit).
Se o desenho já está explicando a ação para o leitor, porque não utilizar o
texto para aprofundar a psicologia do personagem, ou narrar eventos que o
desenho não possa mostrar?
Esse é em geral o
segundo maior defeito dos roteiristas iniciantes: limitar o texto a contar coisas
que o desenho pode mostrar sozinho. (O primeiro maior defeito é querer explicar
tudo na história segundo a lógica do mundo real. As histórias têm a sua lógica
própria, definida pelo roterista quando ele imagina os personagens e o universo
no qual eles vão se deslocar).
Dito isso, podemos
analisar algumas técnicas de texto.
O texto pode ser
usado, por exemplo, para que o roteirista conte a história. É o que Miller faz
em A Queda de Matt Murdock. Após observar a luta
entre entre Matt e o Rei do Crime (na qual não há texto, pois ele seria
desnecessário), vemos ângulos cada vez mais fechados de um carro no fundo de um
rio, enquanto o texto diz: "O Rei é um homem cuidadoso. A morte de Murdock
não deve ser nem misteriosa e nem suspeita. Não há motivo algum para
investigação. Inconsciente, mas vivo, Murdock é colocado num taxi roubado. O
taxi é jogado no cais 41, no rio leste. Seu cinto de segurança e a porta são
emperrados por um processo indêntico à ferrugem. Murdock é encharcado de
bebida".
O texto, portanto,
está em terceira pessoa e no presente, mas não está explicando o desenho, ele
está contando coisas que o desenhista
não poderia mostrar em tão pouco espaço.
Texto em primeira pessoa em Cavaleiro das Trevas |
O mesmo Miller usa
um tipo diferente de texto em Cavaleiro
das Trevas. Em um sequência, vemos Batman escalando uma gárgula e lemos o
seguinte: "A dor que já dura três dias arranha minhas costas. Eu espano o
pó das articulações e subo. Isso já foi mais fácil".
O texto, aqui,
reflete os pensamentos do personagem. Por
isso, ele está no presente e em primeira pessoa. As frases são curtas
para dar movimento à cena. Uma vez que as HQs, ao contrário do cinema, não têm
movimento, é necessário inventar alguns truques para enganar o leitor e fazê-lo
acreditar que está vendo movimento. Um
deles é escrever frases curtas e distribuí-las verticalmente pelo quadro.
Miller é um mestre nesse tipo de engodo.
Apresentei dois
exemplos de Frank Miller para demonstrar como, dentro de um mesmo estilo, pode
haver vários formatos de legenda. Antes de seguirmos em frente, no entanto,
faz-se necessário definir alguns tipos básicos de textos.
Exemplo de narrador em terceira pessoa |
PRIMEIRO TIPO – Narrador em
terceira pessoa: É quando o
autor, o roteirista, tem a palavra. O texto ficará em terceira pessoa e o
narrador, portanto, não faz parte da
história. A história Castelos de Areia, de Gerry Boudreau e publicada na
extinta revista Kripta, é um exemplo disso. Enquanto vemos uma mulher correndo,
o texto diz: “Estava frio e escuro no túnel, como no útero de uma mãe morta.
Ela sentiu o ar penetrar por sua pele e cobrir suas artérias como uma fina
camada de gelo”.
Texto em primeira pessoa |
SEGUNDO TIPO – Narrador-personagem - é quando um dos personagens narra a
história. Um exemplo disso é a história
de piratas que o garoto está lendo em Watchmen: "Acordando do pesadelo, me encontrei
numa lúgubre praia entulhada de cadáveres. Ridley jazia próximo de mim. Os
pássaros devoravam seus pensamentos e memórias". Esse tipo de texto também
pode ser uma continuação do diálogo, quando a imagem mostra algo do passado.
Nesse caso, o texto deve vir entre aspas.
Gerry Conway usava muito o recurso do texto diálogo em sua fase no Homem-araha |
TERCEIRO TIPO - Texto
diálogo - recurso muito pouco usado, mas bastante criativo. É quando o
narrador parece estar conversando com o personagem. Gerry Conway, quando
escrevia o Homem Aranha, no início da década de 70, costumava usar muito essa técnica. Numa
sequência que mostra o aracnídeo balançando-se sobre a cidade, o texto diz:
"As pessoas terminam fazendo o que é preciso... mesmo que se odeiem
por isso. E você se odeia por isso, não é Peter? Sim, com certeza".
Outro exemplo é a história Shamballa,
de J.M.De Mattei, com o personagem Dr. Estranho: “Mestre das
Artes Místicas. Desde que assumiu esse majestoso título, parece ter eliminado a
malícia e a mesquinhez de seu coração. Pena que ainda não aprendeu a sorrir.
Você caminha, uma criança brincando com as sombras da memória: a imagem do
desgraçado que foi se reflete na neve ofuscante”.
A partir desses três
tipos básicos é possível produzir uma enorme variedade de textos.
Ainda
sobre a legenda é importante considerar algumas questões. A primeira delas é a
uniformidade. Se a história começou sendo narrada por um personagem, refletindo
seus pensamentos, por exemplo, ela deve ser narrada pelo personagem até o fim,
sob pena de dar a impressão para o leitor de que o personagem deixou de pensar.
Por outro lado, se começamos no presente, é bom continuar no presente.
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