Quando conheci Afonso, aos 14 anos, eu só tinha lido um livro,
Aventuras de Xisto, de Lúcia Machado de Almeida. Afonso já tinha lido todo Lobato, infantil e adulto,
alguns livros de Freud e estava começando a ler Jung em edições bonitas, encadernadas, que ornavam
a sala de sua casa.
Essas três coleções tinham
história. Haviam pertencido ao seu padrinho, sargento do exército. Em plena
ditadura, era um militar de esquerda. Um dia bateu na porta da família do
afilhado com caixas repletas dessas coleções:
- Me descobriram. Eu vou sumir. Esses livros ficam de presente para o
Afonso.
Nunca mais ouviram falar dele. Não se sabe se foi pego pelos órgãos de
repressão, ou se fugiu para outro país.
Afonso tinha um ciúme atroz
desses volumes encadernado. Coisa de colecionador. Mostrava o que estava
lendo, comentava, lia um trecho, mas não me deixava nem tocar no exemplar.
Talvez isso tenha aguçado minha curiosidade pela leitura. Como não tinha livros em casa, tive que ir
desbravando outros caminhos. Descobri os sebos e muitas vezes voltava a pé para
casa, pois havia gastado o dinheiro da passagem com livros e gibis. 1984, de
George Orwell, custou exatamente o valor de uma passagem de ônibus, depois de
muito choro com o dono do sebo. Um outro livro que custou o preço exato de uma
passagem de ônibus foi um volume argentino sobre história romana, com o qual
não só aprendi sobre Roma, mas também comecei a dar os primeiros passos na
língua espanhola.
Descobri também a biblioteca pública, em especial a seção circulante,
que emprestava livros. Pegava um livro
por semana, religiosamente. Passava horas
olhando entre as estantes, lendo trechos, sorvendo um gostinho da obra.
Na dúvida, levava Júlio Verne. E nunca
me arrependi. Entre os vários xodós, um exemplar de Viagem ao centro da terra com
um texto delicioso e ilustrações de um
artista espanhol. Talvez da mesma
coleção (lembro que o ilustrador também era espanhol), um outro livro que me
fascinou por seu intimismo: Robison Crusoe, um livro com um único personagem na
maioria dos capítulos. E, claro, Lobato, mas esse eu emprestava pouco. Havia
muitos livros dele em sebos e fui comprando um a um, muitos da mesma coleção
encadernada em verde que eu via na casa do Afonso.
Na circulante havia um quadro onde eram colocadas pequenas resenhas
escritas pelos leitores. Quando emprestei meu primeiro livro (um ótimo volume
de contos de HG Wells), a bibliotecária sugeriu que eu escrevesse uma resenha
para o quadro. Escrevi e na semana seguinte escrevi outra, e outra e outra, até
que o quadro fosse totalmente tomado por resenhas de minha autoria.
Eu seguia também as sugestões da bibliotecária, algo muito útil para
quem leu um livro por semana, por anos a fio. Meninos de engenho, de José Lins
do Rego, foi dessa safra.
Ler era um prazer e, ao mesmo tempo, uma competição. Como na fábula do
coelho e da tartaruga, eu largara muito atrás, mas queria vencer a corrida.
Queria ler mais livros que o Afonso. Felizmente para mim, ele era como a
tartaruga, lento para ler e preguiçoso para escrever. Aos 17 anos eu já
tinha lido mais livros que ele, todos registrados em um caderno.
Além de, mesmo por vias tortas, me despertar o interesse pela leitura,
Afonso, muito influenciado por Lobato, me ensinou uma grande lição: a
propriedade no uso das palavras.
No meio da conversa ele soltava
uma expressão que eu não conhecia e perguntava:
- Entendeu?
- Entendi, claro.
Ele ralhava:
- Entendeu nada. Você nem sabe o que essa palavra significa.
Como eu negasse, ele me desafiava a definir o verdadeiro sentido da
expressão.
Eu gaguejava, gaguejava, gaguejava, até que finalmente admitia ser era
ignorante com relação àquele termo.
Era humilhante, mas era também
uma lição: nunca finja entender de algo que não sabe e, principalmente, nunca use palavras cujo
significado não esteja muito claro para você.
Hoje vejo muitas pessoas
ansiosas por “falar difícil” usando expressões cujo significado
desconhecem e penso: essas aí deveriam ter tido um amigo como o Afonso e um
mestre como Lobato.
Afonso passou anos se preparando nos melhores colégios, mas, mesmo com
sua inteligência a e seu texto irrepreensível, não passou no vestibular. Foi
para o Rio de Janeiro e nunca mais nos falamos. Era época pré-internet e as minhas cartas levavam
semanas para chegar e as respostas às
vezes meses, até se esgotarem
completamente. À moda de Carlota Joaquina, ele dizia que não queria levar nada
de sua estada em Belém, nem mesmo os amigos.
A última notícia que tive dele é que tinha se envolvido com drogas e
tinha abandonado dois curso de graduação, um deles de psicologia. Eu já
trabalhava como jornalista quando uma
conhecida em comum me disse que ele ainda era sustentando pelos pais e não
estava estudando ou trabalhando.
Mesmo com toda sua arrogância e egoísmo, Afonso despertou em mim o
lado intelectual, o interesse pela leitura e o gosto por escrever de maneira
clara. Foram verdadeiras lições
literárias.
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