Os livros de Marcos Rey provocariam escândalo hoje em dia. |
Quando tinha 11 anos minha filha me disse: “Pai, eu
acho que os livros paradidáticos são feitos para a gente aprender a não gostar
de livros”. Meu filho, de 17, concordou.
Isso me espantou porque os dois são leitores vorazes. Meu
filho mais de livros, principalmente sobre cinema e história. Minha filha de
quadrinhos, em especial Turma da Mônica (os números prediletos, alguns,
autografados, guardados caixas especiais.) e Mafalda. Somos assinantes de
revistas como a Superinteressante, Mundo Estranho e Galileu, que são disputadas
a tapa quando chegam em casa.
Então, se os dois gostam de ler, porque não gostam dos
livros paradidáticos?
Perguntei se eles não tinham gostado de nenhum livro. Eles
me destacaram dois: uma adaptação de Os miseráveis, de Victor Hugo, e “”Durma
em paz, meu amor”, de Pedro Bandeira, sobre jovens que contam histórias de
fantasma em uma noite de tempestade.
Contei a eles que na minha época, os livros paradidáticos
eram um passo importante no gosto pela leitura. O primeiro que li foi Aventuras
de Xisto, tão manuseado que chegou num ponto em que eu havia decorado todas as
páginas. Depois vieram os deliciosos romances policiais de Marcos Rey, como O
rapto do garoto de ouro. Eram histórias apaixonantes, que envolviam o leitor
com muita aventura, suspense e até humor.
Minha filha me explicou que hoje a maioria dos livros não
era assim e deu um exemplo de um livro sobre a família: um professor falava
sobre o assunto, os alunos faziam seus trabalhos e depois cada um apresentava.
Não havia conflito, trama, nada, apenas uma lição de moral sobre a importância
da família.
Isso me fez refletir sobre algo que já desconfiava há muito:
os livros juvenis hoje são feitos para não provocarem polêmica, não desagradar
a ninguém. Um tema mais espinhoso pode ser a razão pela qual os professores
deixam de adotar a obra com medo de serem denunciados pelos pais, virarem notícia
no jornal. Assim, evita-se conflitos, os personagens são todos padronizados,
bonzinhos na maioria, como se a trama só existisse para passar uma lição, seja sobre
a importância da família ou sobre palavra que se deve aprender para ser uma
pessoa educada.
O resultado são obras tão assépticas quanto salas de
cirurgia. Como dizia Isaac Assimov, se chatice matasse, ler esses livros seria
uma sentença de morte.
Tanto esquerda quanto direita estão empenhadas numa cruzada para
“defender as crianças”. E defender as crianças significa mantê-las longe de
qualquer coisa que os pais considere inadequado. Exemplo muito bom disso foi o
escândalo recente da graphic novel dos Vingadores, vendida na Bienal do Livro,
que continha um quadrinho com um beijo entre dois personagens gays. Foi o
suficiente para mobilizar vereadores, prefeito, fiscais, policiais e todo o
aparato governamental. E o quadrinho nem mesmo estava sendo adotado em escolas.
Era uma graphic novel, publicações caras, voltadas para o público adulto. Mas a
fúria dos “defensores das crianças” foi maior que qualquer bom senso.
Existe, por exemplo, um grupo propondo o banimento dos
livros de Monteiro Lobato das escolas (não se fala em censura, dizem que estão
apenas protegendo as crianças). O mesmo aconteceu com a obra do quadrinista
norte-americano Will Eisner, acusado de pedofilia e pornografia por conta de
uma história em que uma menina levanta a saia para enganar o zelador de um
prédio e de outra em que aparece a costa nua de uma mulher.
O escritor Lewis Carroll não é adotado em escolas públicas
por conta da suspeita de que ele seria pedófilo.
Até mesmo o singelo Aventuras de Xisto, que fez a alegria de
minha infância, dificilmente existiria hoje em dia. A história de fantasia se
passa numa Idade Média imaginária repleta de magia. Já no primeiro capítulo o
livro traz motivos de sobra para polêmica. Na escola, Xisto prega uma peça em
seu professor rabugento, fazendo-o acreditar que está surdo. A figura do
professor rabugento e a brincadeira certamente não passariam em branco hoje em
dia. Mas as acusações mais sérias certamente viriam da caracterização dos
protagonistas. Xisto, o herói, é loiro e bonito, um encanto. Já Bruzo, o filho
da empregada, é moreno e gordo. E burro (“pena que tivesse um raciocínio um
tanto confuso...”). Hoje provocaria manchetes de jornais, com pais e
professores revoltados com a história por seu conteúdo racista e
preconceituoso.
Enquanto nos deliciávamos com as aventuras de Xisto nenhum
de nós jamais teve a leitura de se tratava de preconceito, mas hoje um livro
desses certamente seria considerado má-influência.
Até Maurício de Sousa já sofreu, e muito, nesses tempos de
politicamente correto. Uma tira em que o barbeiro usa ferramentas de pedreiro
para cortar o cabelo do Cascão foi acusada de racismo por muitos, que preferiram
ignorar o fato de que o Cascão é um personagem branco.
A série toda a Turma da Mônica foi acusada de ser um
estímulo ao buyiling, numa referência às surras que a Mônica dá no Cebolinha e
no Cascão. Segundo a acusação, as histórias em quadrinhos estimulavam as
crianças a resolverem os conflitos na base da violência.
Nesses tempos de politicamente correto, a obra juvenil de
Marcos Rey seria uma impossibilidade. Títulos como Gincana da morte, corrida
infernal, o diabo no porta-malas, O rapto do garoto de ouro e Doze horas de
terror jamais seriam selecionados pelos professores justamente pela presença de
palavras como “terror”, “morte”, “infernal”, “diabo” e “rapto”.
A obra mais famosa de Marcos Rey, O mistério do cinco
estrelas, começa com um assassinato. Em Bem-vindos ao Rio um grupo de meninos
de rua seqüestra um garoto e uma garota de classe média. Alguém consegue
imaginar um livro desses sendo lido nas escolas hoje em dia? Os defensores da moral e dos bons costumes
estariam fazendo passeatas e correntes no zap zap denunciando o caso.
Aliás a própria existência de um Marcos Rey juvenil seria
uma impossibilidade. Que editor hoje convidaria para escrever para crianças um
cara que passou a década de 1970 vivendo de escrever pornochanchadas? Seria um
escândalo nacional, motivo de matérias na grande imprensa e de protestos
acalorados de pais e professores.
Felizmente, na minha infância, vivíamos outros tempos, e
Marcos Rey não só pôde publicar seus livros como encantou toda uma geração, que
se apaixonou pela leitura viajando em suas histórias policiais.
Da mesma forma, gerações e gerações se apaixonaram pela
leitura com Monteiro Lobato, Aventuras de Xisto e muitas outras obras. Mas isso
foi numa época em que os livros eram apresentados às crianças para que elas
mesmas tirassem suas conclusões e interpretações. Hoje, o politicamente correto
tanto da direita quanto da esquerda quer proteger as crianças de tudo e de
todos. O resultado estamos vendo aí: uma geração que não gosta de livros. Mas isso não parece ser motivo de preocupação.
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