A única coisa ruim em Coisas Frágeis (Conrad, 2008, 208 págs.),
o novo livro de Neil Gaiman, é a rapidez com que ele acaba. Eu o havia levado a
uma viagem a um sítio na Ilha do Marajó, um local a dezenas de quilômetros da
livraria mais próxima. Devorei o livro em dois dias e fiquei sem ter o que ler.
O britânico Neil Gaiman ficou famoso por seus roteiros de
quadrinhos, especialmente para o personagem Sandman, e ajudou a elevar os
comics a um novo patamar artístico e literário. Foi sua geração que fez com que
os roteiristas fossem finalmente respeitados no mercado americano.
Depois do sucesso dos quadrinhos, Gaiman enveredou pela
literatura fantástica com Stardust e Lugar Nenhum, entre outras obras. Lugar
Nenhum, aliás, é um ótimo exemplo de como escrever uma história fantástica
apreciável até mesmo por quem não é fã do gênero. Stardust fez tanto sucesso
que acabou sendo transposto para o cinema. Mas, apesar de ser muito competente
em romances, é nos contos que Gaiman se sente mais à vontade. Mesmo em Sandman,
os melhores momentos sempre foram as histórias curtas, como em
"Calliope", "Sonhos de uma noite de verão" e "Um sonho
de mil gatos".
Em Coisas Frágeis, portanto, Gaiman está em seu elemento. O
livro é composto por nove contos, escritos com objetivos diversos. Em comum à
maioria deles, o tom de homenagem. A obra é dedicada a Ray Bradbury, Harlan
Ellison e Robert Scheckley. Ray Bradbury notabilizou-se por trazer a poesia
para a ficção científica. "A Vez de Outubro", segundo conto da
coletânea, tem influência óbvia desse autor norte-americano. O texto inicial
parece ter sido tirado de um dos textos de Bradbury: "Era a vez de
outubro, por isso fazia frio naquela noite, e as folhas estavam vermelhas e
alaranjadas e caíam das árvores que circundavam a clareira". Na história,
os meses do ano se reúnem ao redor de uma fogueira, comendo lingüiças assadas e
bebendo sidra. A estrutura pessoas reunidas para contar histórias é um
verdadeiro fetiche para Gaiman, que já a usou diversas vezes em Sandman.
"A Vez de Outubro" foi escrito num encontro com Harlan
Ellison em uma convenção. Os dois se trancaram num quarto de hotel, Gaiman com
seu laptop e Ellison com sua máquina de escrever, para produzir algo juntos.
Como Ellison precisava terminar uma introdução, Gaiman iniciou esse conto. Ao
mostrá-lo ao amigo, este respondeu: "Não, parece uma história de Neil
Gaiman". E o texto, incompleto, foi arquivado. Anos depois, Peter Straub
convidou Gaiman a participar da coletânea Conjunctions e ele se lembrou dessa
história curta sobre um garoto morto e outro vivo. "Levei algum tempo para
entender como realmente seria a história e, quando terminei, dediquei-a a Ray
Bradbury, que a teria escrito muito melhor do que eu", escreveu o autor,
na introdução do livro. Modéstia em excesso. O conto parece uma deliciosa
mistura de Gaiman com Bradbury, e é um dos pontos altos do livro.
"Um Estudo em Esmeralda" surgiu de um pedido de
Michael Reaves, que estava editando uma coletânea intitulada Shadows Over Baker
Street. O organizador queria um texto que juntasse Sherlock Holmes com
Lovecraft. Gaiman viu-se em apuros. Afinal, Lovecraft lidava com o irracional,
a loucura, enquanto Conan Doyle apreciava a racionalidade em suas histórias.
Apesar da incongruência de estilos, Gaiman fez um bom trabalho, tanto que
acabou ganhando o prêmio Hugo, um dos mais prestigiados da ficção científica.
Foi a partir desse conto que o autor se tornou membro do Baker Street
Irregulars, um grupo de entusiastas de Sherlock Holmes fundado em 1934 por
Christopher Morley e que já teve em seus quadros gente famosa, como Franklin D.
Roosevelt e Isaac Assimov.
Gaiman se saiu bem imitando Conan Doyle. Em "Um Estudo em
Esmeralda" aparecem todos os elementos que fizeram o sucesso de Sherlock
Holmes, acrescidos de uma atmosfera steampunk e de pequenos textos que parodiam
anúncios do século XIX ao mesmo tempo em que homenageiam obras famosas, como em
"E agora, o Doutor Henry Jekyll orgulhosamente anuncia o lançamento dos
mundialmente renomados 'Pós de Jekyll' para consumo popular. Não mais um
privilégio para poucos. Liberte o seu Eu Interior!".
"Lembranças e Tesouros" destoa do restante da
coletânea. No meio de tantos textos poéticos, a narrativa noir desse conto é
quase como um soco no estômago. Ainda assim, é um bom conto. Escrito originalmente
como história em quadrinhos para a coletânea It's dark in London, de Oscar
Zarate, mas acabou virando um conto. Apesar da narrativa à la Dashiell Hammett,
o conto remete a Jorge Luis Borges, uma outra grande influência de Gaiman. A
história do povo cujos homens são o extremo da beleza poderia muito bem ter
saído de um dos livros do autor argentino.
Um dos pontos altos de Coisas Frágeis é "Golias", um
conto escrito para o site de Matrix, explorando o universo da série. Gaiman leu
o roteiro do primeiro filme, antes que ele fosse lançado no cinema e escreveu
essa narrativa. Nela, a Terra está sendo atacada por uma forma de vida
alienígena e a única forma de salvar o planeta é despertando um dos humanos
escravizados pela Matrix. Gaiman brinca com a idéia de tempo psicológico,
fazendo uma história que, surpreendentemente, tem final feliz. Mesmo que uma
felicidade virtual. "Golias" tem o mesmo nível do primeiro filme e é
superior aos outros dois da trilogia.
"O Pássaro-do-Sol" tem jeito de deliciosa sobremesa. É
um conto sobre um grupo de pessoas, o Clube Epicuriano, que dedica sua vida a
experimentar pratos inusitados. Foi escrito como presente de aniversário para a
filha de Gaiman, quando ela fazia 18 anos. Ele pretendia imitar o estilo de R.
A. Lafferty. "Suas histórias eram incríveis, estranhas e inimitáveis ―
logo na primeira frase, você já sabia que estava lendo um conto de
Lafferty". O resultado foi um conto saboroso e diferente. Seria perfeito
para fechar o livro.
Infelizmente, essa honra coube ao texto mais fraco da coletânea.
"O Monarca do Vale" foi escrito no espírito de Beowulf, filme que
Gaiman roteirizou em conjunto com Roger Avary. O resultado, apesar da boa
influência, é um conto arrastado e previsível que nem de longe mantém a mesma
poesia dos outros da coletânea. Ainda assim, é um bom texto, o que garante a
leitura até o final.
Coisas frágeis mostra bem por que Neil Gaiman está se tornando
um autor cada vez mais conhecido, mesmo por aqueles que não leram seus
quadrinhos na década de 1990. A Conrad fez um bom trabalho de edição. Só não
leve apenas ele para ler nas férias. Vai acabar nos primeiros dias.
Em tempo: a razão para o livro ser tão curto é que a Conrad o
dividiu em dois volumes no Brasil.

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