segunda-feira, novembro 30, 2020

Gonzaga - de pai para filho

 

Gonzaga, de pai para filho é uma cinebiografia lançada em 2012 de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha assinada pelo diretor Breno Silveira e pela roteirista Patrícia Andrade, os mesmos de Dois filhos de Francisco.
Breno Silveira se especializou em trabalhar vida de músicos no cinema e tirar delas o melhor. Em 2 filhos, ele foi inteligente ao focar a narrativa no pai e seu sonho de transformar seus filhos em astros da música, o que transformou o filme interessante até para quem não gosta de Zezé di Camargo e Luciano, como é o meu caso.
Em Gonzaga, ele focou sua narrativa no conflito entre pai e filho. Foi uma estratégia acertada do roteiro. Cinebiografias costuma pecar por falta de conflito, que é o motor de um filme.  O resultado são cenas soltas da vida do biografado. Em Gonzaga, Breno aproveita-se de uma visita que Gonzaguinha faz ao pai e grava com ele uma entrevista como a linha que costura os as cenas. Esse fato realmente aconteceu e em alguns trechos pode-se ouvir o áudio original de entrevista. Nele transparece não só a vida do cantor, mas sua relação difícil com o filho.
Gonzaguinha foi criado pelos padrinhos, quando criança nunca foi em um show do pai e sente-se abandonado por ele. Luiz Gonzaga acha o filho arrogante e comunista. Em meio à conversa, são apresentados os fatos da vida do rei do baião. Eles precisam superar suas diferenças para mostrarem o que realmente sentem um pelo outro (não é novidade para o expectador que os dois se reconciliam e Gonzaguinha torna-se o grande responsável por resgatar a obra do pai. O interessante é saber como isso acontece).
Um ponto positivo a mais é forma como diretor trabalha a música, muitas vezes compondo cenas inteiras em que a narrativa está focada na música, como na ótima cena em que ele volta para casa no sertão. A sequência não tem diálogos, sendo focada na música "Respeita Januário", cujo refrão é conhecidíssimo: "Luis, respeita Januário. Você é mais famoso, mas seu pai é mai tinhoso...". Alías, essa sequência termina com um fantástico plano emblemático: o carro se afasta e a família é filmada pelo vidro do carro e a locução diz: "Eu sai do sertão, mas o sertão não saiu de mim".
Quer um conselho? Assista Gonzaga, de pai para filho, mas separe um lenço.

Mama Guga, de Fernando Canto

 


Fernando Canto é um dos grandes nomes da literatura amapaense. Mais conhecido por suas letras de música – ele foi um dos fundadores do grupo Pilão, que marcou época na MPA, ele também é um contista inspirado, como mostra o livro recém-lançado pela Paka-Tatu, Mama Guga.
O livro traz contos intimistas e emocionantes, como O retrato azul, narrado como um filho falando ao pai: “Agora estou aqui, engolindo este silêncio, sem saber o que dizer para você (...) Agora estamos nós dois sem saber o que fazer... Você aí sentando nesta rede com os olhos brilhosos de lágrimas, olhando fixo o quadro que lhe demos de presente de aniversário”. Além de criativa, a abordagem permite um aprofamento no personagem que talvez não fosse possível de outra maneira.
Há contos que oscilam entre o causo urbano, o humor e o drama, como em “A seringa contaminada de Bambo, o zagueiro do futlama”, no qual um homem com HIV ameaça picar pessoas com uma seringa.
Mas os melhores contos são aqueles em que Fernando Canto se utiliza da mitologia local, entremeando-a muitas vezes de fatos históricos e narrativas cotidianas. Exemplo disso é “As mulheres-peixe do meu garimpo”, sobre um garimpeiro que se enamora de sereias encontradas em uma gruta. Mas são sereais amazônicas, com cor local e sexualidade aflorada: “Tinham a cor dourada e eram largas. Suas barbatanas eram vermelhas, umas gracinhas. Nem de longe pareciam com as sereias que eu tinha visto em revistas. Brincavam com as águas e sorriram quando me viram. Me chamaram pra bem perto delas, e aí pude conhecer o verdadeiro sabor do prazer sexual”.
Desses, o melhor é “A cidade encantada sob a pedra”.
A história se passa em uma cidade fictícia (meio que uma mistura de Macapá e Mazagão), mas mágica, em que seres encantados saem do fundo do rio para defender os negros entre eles o pretinho Chibante, que distribui para a criança bombons trazidos em seu chapéu de casco de tartaruga.
Na história, dois irmãos descem à cidade encantada em busca de um suposto tesouro. O interessante do conto é a forma como o autor mescla fatos históricos, personagens mitológicos e ladrões de marabaixo para construir sua narrativa.
Para quem não é da região, os ladrões são músicas cantadas nas rodas de marabaixo, geralmente sobre fatos ocorridos na comunidade.
Há duas versões sobre o nome. Na primeira delas, os versos são chamados ladrões porque um “rouba” a música do outro, continuando o verso. Na outra, porque a letra “rouba” fatos das vida pessoal das pessoas, tornando-as públicas através da música. Fernando Canto adota essa última explicação e constrói todo o conto a partir de ladrões, entremeando-os à narrativa em prosa. A narrativa é fluída, quase como um causo narrado a um visitante e fantasia, história e ladrões vão se misturando naturalmente.
O conto é um delicioso causo e, ao mesmo tempo, uma curiosa experiência estética.   
É de se destacar o ótimo trabalho editorial da Pakatatu no livro, a começar pela bela capa com ilustração de Maciste Costa. O papel polém e a difamação simples, limpa, mas eficiente fazem com que a leitura do livro se torne leve e agradável.

ÚLTIMAS PALAVRAS antes da morte de figuras históricas

Darth Vader deseja a você um feliz Natal!

 

Feliz Natal!!!


 

A terra na rota fatal – um ensaio para Crise nas infinitas terras

 


Em 1978 a revista mix Showcase, da DC Comics, completou 100 números. Para comemorar, a editora publicou um crossover entre os principais personagens que frequentaram as páginas da publicação.

O roteiro ficou a cargo de Paul Kupperberg e os desenhos a cargo de Joe Staton.

Na história, a terra é tirada de sua órbita por um vilão alienígena e isso provoca um “campo de estagnação” que torna o tempo maluco, fazendo com que pessoas das mais diversas eras apareçam no mesmo momento. Esse mesmo campo impede que os membros mais poderosos da Liga da Justiça, que se encontram em missão no espaço, seja acionados. Então caberá a esses outros heróis deterem a ameaça, capitaneados pelo Lanterna Verde, Flash e Aquaman.

A história juntaa personagens famosos com desconhecidos.


Alguns dos personagens que aparecem na aventura são relativamente conhecidos, como Adam Strange, Espectro ou Elektro. Mas outros são apenas ilustres desconhecidos, como Rip Hunter, o mestre do tempo, Guardião do Espaço, Desafiadores do Desconhecido (um quarteto criado por Jack Kirby antes do Quarteto Fantástico), Desastrado, Bolão ou Cabelo de fogo.

Os Desafiadores do Desconhecido foram criados por Jack Kirby e serviram de inspiração para o Quarteto.


Ao ler a história o que chama antenção é o quanto essa edição especial é parecida com a maxissérie Crise nas infinitas terras. Claro,  Paul Kupperberg não é Marv Wolvman e Joe Staton está longe de ser George Perez. Além disso, o tom aqui é de humor, enquanto em crise era obviamente de drama.

Mas muitas das ideias que seriam usadas em Crise já estava lá, incluindo a confusão temporal, as equipes que se dividem para combater ameaças distintas, o resgate de heróis antigos e desconhecidos.

O tom da história era de humor. 


Além disso, é uma HQ divertida, com uma final interessante em que quem resolve a situação são duas garotas sem poderes.

No Brasil essa história só foi publicada pela Ebal em um edição extra da Invictus. Duas curiosidades: na capa a revista prometia a presença de 100 heróis. A história não tinha 100 heróis. A segunda é que na Ebal a Liga da Justiça era chamada de Os guardiões.

Ps: Dá para baixar o scan aqui: http://guiaebal.com/invictus09.html

domingo, novembro 29, 2020

Superman – as quatro estações

 

Um dos aspectos mais interessantes do personagem Superman é como ele tem sido objeto das abordagens mais diversas, o que mostra o quanto o herói é, na verdade, complexo. Superman – as quatro estações, de Jeph Loeb (roteiro), Tim Sale (desenhos) e Bjarne Hansen (cores) mostra um aspecto poucas vezes explorado no personagem: a do matuto garoto de interior, o ingênuo habitante da Smallville.
O belíssimo desenho de Tim Sale explora esse lado matuto de Clark Kent, retratando-o como um rapaz enorme com cara de criança. Essa dualidade entre a personalidade ingênua e o enorme poder é detalhado também pelo texto de Jeph Loeb, ao explorar o início da carreira do personagem, quando ele ainda estava descobrindo seus poderes, tinha muitas dúvidas e até medos.
Como o próprio nome diz, a série é dividida em quatro capítulos, cada um ligado a uma estação e cada um narrado por um personagem: Jonathan Kent, o pai adotivo de Clark Kent narra a primavera, Lois Lane narra o verão, Lex Luthor o outono e Lana Lang o inverno.
Essa mudança de foco narrativo é interessante por mostrar o herói sob vários ângulos diferentes.
Nesse sentido provavelmente o capítulo de Lex Luthor é o mais interessante, já que é o ponto de vista de um vilão. É um capítulo sobre ciúmes, sobre como o homem de aço tirou de Luthor o protagonismo em Metrópolis e como este se vinga de forma muito sutil, antigindo o personagem em sua maior fraqueza. O capitulo ironicamente mostra o kriptoniano como alguém muito mais humano que o terrestre Luthor.
Embora o roteiro seja todo certinho, é a arte que se destaca. Tim Sale não só é um desenhista incrível, como é um narrador soberbo, sabendo exatamente como intercalar sequências de vários quadrinhos com splah pages. Aliás, cada página é uma aula de como usar a diagramação como elemento narrativo.

Artigo sobre a revista Herói

 


Meu artigo A revista Herói e o jornalismo infanto-juvenil apresentado no 42o Congresso Intercom de Ciências da Comunicação já está disponível nos anais do evento. Para acessar, clique aqui.

Fundo do baú - O Homem pássaro


Homem-pássaro foi um desenho animado criado pelo lendário Alex Toth para a Hanna-Barbera. Foi exibido entre 1967 e 1969 no canal NBC.
O personagem era um super-herói que combatia o crime a serviço de uma sociedade secreta, com ajuda de seu ajudante Birdboy e da ave Vingador.
O herói tinha os seguintes poderes:
Absorção solar espontânea: capacidade mágica de absorver energia solar e converter em vigor corporal, resistência física a danos físicos, gerar potentes raios de calor concentrado através das mãos e dedos, controlar a temperatura de um ambiente ou equipamento e produzir um “escudo” solar protetor de grande resistência contra ataques.
Voo: por possuir um par de asas é possível alçar grandes alturas e impulsionar-se através do ar em qualquer direção.
Regeneração ou fator de cura solar: capacidade de curar ferimentos e restaurar a própria saúde em alta velocidade desde que exposto à luz solar.
Capacidade de se comunicar com a ave Vingador.

Clássicos revisitados – cinema & HQ


Clássicos revisitados é uma das coleções de quadrinhos mais interessantes já lançadas no Brasil. Publicada pela editora Quadrinhóle, ela propõe um desafio aos roteiristas: misturar temas distintos nas história.
A primeira edição misturava contos infantis e histórias de máfia.
No volume 5, lançado em 2018, a ideia era misturar clássicos dos quadrinhos com clássicos do cinema. Eu participei com três histórias.
Uma delas me deixou muito feliz por ter sido desenhada pelo grande Bira Dantas, um quadrinistas que admiro há décadas, com um fantástico traço de humor e com o qual sempre quis trabalhar.

O desafio era unir Os sobrinhos do Capitão com o filme Juventude transviada. Para que o roteiro funcionasse, tive que acrescentar mais um item à salada: o filme Curtindo a vida adoidado, clássico absoluto do cinema teen da década de 1980. Há várias outras referências, inclusive à série espanhola Mortandelo e Salaminho e à clássica personagem Betty Boop.
Na história um capitão de policia tenta pegar os protagonistas em fragrante enquanto eles realizam suas traquinagens, mas sempre se dá mal. É uma típica comédia de repetição, em que a mesma situação ocorre  diversas vezes, em contextos diversos.

Outra história para o volume era a junção do clássicos dos quadrinhos nacionais garra cinzenta com o clássico do cinema expressionista O gabinete do doutor caligari. Desenhada por Gabriel Lucas, a trama interliga as duas histórias através do depoimento do chefe de polícia que investigou o caso Garra Cinzenta, o vilão que avisa a polícia de seus crimes antes que eles acontecessem. O final, como no filme expressionista, apresenta reviravolta.

Era para ser apenas essas duas colaborações, mas um dos artistas deixou de entregar uma história e aí entrou em ação a dupla que resolve tudo nos 45 minutos do segundo tempo: Gian Danton e Biribinha. O desafio era unir Yellow Kids com Gremlins. O resultado foi uma sátira do mundo das redes virtuais, com um protagonista que acredita em tudo que vê no zap zap e é aconselhado por um chinês a comprar algo para proteger sua família.
Clássicos revistados 5 está à venda na loja da Quadrinhópole https://quadrinhopole.com/loja/

Tarzan, o magnífico

 


Tarzan foi um dos personagens mais populares do século XX. Suas aventuras abrilhantaram milhares de revistas em quadrinhos, tiras de jornais, desenhos animados, filmes. Pouca gente, no entando, sabe que o personagem é oriundo da literatura, criação do norte-americano Edgar Ricer Burroughs.

Tarzan, o magnífico, publicado pelo clube do livro em 1976 permite vislumbrar um pouco desse rei das selvas literário.

A história se passa na África, tendo como foco duas aldeias sui-generis. Nela, mulheres negras aprisionaram homens brancos perdidos e procriaram com eles durante gerações, criando uma raça de mulheres... brancas. Cada aldeia é governada por um irmão gêmeo, velhos carcomidos, que usam pedras preciosas (um enorme diamente e uma enorme esmeralda) para controlar seus súditos através de poderes mágicos.

A história ecoa algumas das melhores tramas do desenho animado de Tarzan da Filmation, com suas cidades perdidas e povos estranhos. Mas o resultado literário fica muito aquém do que se espera.

Para começar, o livro todo é obviamente racista e nitidamente eurocêntrico. Isso a ponto de incomodar um leitor que normalmente não repararia nesses aspectos.

À certa altura, por exemplo, um dos brancos cativos tenta fugir de uma das aldeias e encontra Tarzan. E espanta-se: “Já vi tantas coisas inacreditáveis  desde que vim para essa região que nem mesmo a visão de um homem de alta civilização andando por aí quase nu e sozinho causou tanta surpresa quanto seria de esperar”.

Em outro momento, quando um grupo consegue fugir de uma das aldeias, os negros adotam naturalmente as posições de carregadores e criados pessoais dos brancos, como se fossem escravos deles.

Um dos personagens americanos se apaixonada pela rainha de uma das tribos e foge com ela junto ao grupo do parágrafo anterior. Mas recebe uma advertência de um amigo: embora fosse branca como a neve, ela tinha sangue negro e, por isso, não seria aceita pela sociedade americana.

Mas, se ignorarmos esse aspecto, o livro ainda tem problemas. Tarzan consegue resolver toda a situação por que acha, por acaso, uma passagem secreta que nem mesmo o rei do local conhece. Esse tipo de coinscidencia conveniente é chamada na linguagem de roteiro de deus ex machina.

À certa altura, enquanto fogem, os personagens resolvem se divertir um pouco... caçando leões! Dividem-se em três duplas e cada um mata um. Impressionante como havia leões naquela época e como era fácil caçá-los. Pura diversão!

Além disso, a trama fecha, o terceiro ato termina, e a história continua, como se o escritor não tivesse pensado direito na quantidade de páginas que a história irai ocupar e resolvesse extender a trama. Soma-se a isso o fato de que esse Tarzan literário seja muito pouco parecido com o conhecido por todos nós. Ao invés de se mover pelo alto das árvores em cipós, por exemplo, ele caminha a maior parte do tempo.

E, claro, Burroughs nem de longe é um grande escritor. Mesmo na comparação com outros autores pulps, como Rober E. Howard ou Lovecraft, ou mesmo Conan Doyle, sua narrativa é pobre e muitas vezes confusa. Em alguns momentos, por exemplo, ele pula para outra cena, em outros locais e com outros personagens de um parágrafo para o outro, deixando o leitor confuso.

O que realmente fica desse Tarzan literário é toda a mitologia e toda a ambientação criada por Burroughs, que já aparece nas primeiras páginas “Nenhuma coisa escapava de seu olhar, nenhum odor, contido no seio macio de Usha, o vento, passava sem ser identificado por ele. Bem a distancia, ele viu Numa, o leão, sobre seu posto rochoso de observação; viu ska, o abutre, circulando acima de alguma coisa que sua visão não permitia divulgar”.

É essa mitologia e essa ambientação que fizeram o personagem tão popular e que se tornou eterna nos quadrinhos, nos filmes e nas animações.

sábado, novembro 28, 2020

Creepy - Contos clássicos de terror

 

Existem duas revistas da Warren sendo publicadas no Brasil. A Cripta, com histórias de Eeerie, publicada pela editora Mythos, e a Creepy, da editora Devir.
Dessas, a melhor é Creepy, graças um talento ímpar: o roteirista e editor Archie Goodwin. Goodwin não só era um escritor de talento, mas também um grande editor – e era ele que editava a Creepy e escrevia a maioria das histórias no início. Dizem que ele era uma das pessoas mais simpáticas que já trabalharam no mercado de quadrinhos – e ele dava autonomia total aos ilustradores.
Os desenhistas se empenhavam ao máximo para agradar ao amigo e o resultado dessa soma (ótimos roteiros com desenhistas clássicos fazendo o seu melhor) pode ser visto na edição da Devir.
A lista de ilustradores impressiona: Al Williamson, Reed Crandall, Frank Frazetta, Gray Morrow, Angelo Torres. A capa é do grande Jack Davis.
Esse time consegue fazer até mesmo com a que a batida história dos mortos que voltam para se vingar se torne interessante, como na irônica HQ sobre o quadrinista que só consegue fazer requadros, mas faz sucesso contratando um roteirista, um desenhista e um arte-finalista fantasmas (baseado numa história real). 

A criada

 


A criada é o novo filme do cineasta sul-coreano ParkChan-Wook, conhecido no Brasil por Oldboy. A trama se passa durante a II Guerra Mundial, quando a Coréia foi invadida pelo Japão e trata de um golpe: um falso conde pretende conquistar uma rica moça japonesa, casar com ela e interná-la em hospício, apropriando-se de sua fortuna. Para isso, ele introduz na casa uma criada de confiança, que o ajudará em seus planos. A moça vive em uma mansão construída por seu tio, um pervertido, que treinou a sobrinha para ler contos eróticos para uma plateia seleta e pretende se casar com ela para ficar com sua herança. O golpe, entretanto, se complica quando a criada se apaixona pela patroa.
O filme é construído em três atos, cada um mostrando o ponto de vista de um personagem – e aí está a grande sacada do roteiro: uma mesma cena adquire outros significados de acordo com o olhar de cada personagem. Isso permite ao diretor introduzir viradas na trama, surpreendendo o expectador quando ele parece ter certeza do que está acontecendo.
A única certeza desse filme é: nada é o que aparenta ser.  
Soma-se a isso a ambientação estranha, uma mistura de roupas e arquitetura inglesas, coreanas e japonesas, os personagens bizarros, a sensualidade única, o cuidado apurado com o cenário e suas simbologias e a violência, que finalmente explode no final – tudo é desconcertante nesse filme.
A criada é um daqueles tesouros escondidos da Netflix.

A arte estupenda de Barry Windsor Smith

O primeiro trabalho de destaque de Barry Windsor Smith foi a adaptação de Conan para quadrinhos para a Marvel, no início da década de 1970. Foi um início difícil, em que ele não entendia perfeitamente o personagem e copiava o estilo de Jack Kirby. Em pouco tempo, no entanto, seu traço evoluiu de forma impressionante. Em pouco tempo ele era um dos melhores ilustradores do mercado de quadrinhos americanos em especial de fantasia com sua arte detalhista e seu domínio perfeito da anatomia humana. Confira algumas imagens desse mestre. 














Uma história de Saravejo

 


Entre os anos de 1992 e 1995 a Bósnia foi palco de uma sangrenta guerra étnica. Saravejo, uma cidade até então símbolo de tolerância, tornou-se o centro sangrento de um conflito em que um civil poderia ter seus bens expropriados ou até ser morto apenas por pertencer à etnia errada.

É esse conflito que Joe Sacco narra em Uma história de Saravejo, publicado no Brasil pela Conrad em 2005.

O principal informante de Sacco é Neven, um veterano que atuou em uma das milícias que defenderam a capital contra os sérvios. O álbum todo é costurado em torno da figura de Neven. Ele mente para Sacco, o explora, inventa histórias, arranja informantes que no final não sabem nada sobre a guerra, mas querem dinheiro. Mesmo assim, acaba sendo útil por mostrar o quanto a guerra foi dúbia e o tipo de pessoa que se envolveu nela.

Neven mostra também como Saravejo ficou repleta de ex-combatentes, pessoas que haviam acostumado a matar e não sabiam fazer outra coisa. O apartamento de Neven, totalmente caótico e repleto de lixo espalhado por todos os lugares é a perfeita definição visual de Saravejo no pós-guerra.

A guerra teve início com a desintegração das repúblicas comunistas no pós-queda do muro de Berlim. Na Bósnia, o partido nacionalista sérvio organizou grupos paramilitares para expulsar os não sérvios e se unir à Sérvia. O governo bósnio tinha sido obrigado a entregar suas armas para o Exército Popular da Iuguslávia. Quando os sérvios começaram a atacar Saravejo, só quem podia defender a cidade eram grupos paramilitares, verdadeiras gangues lideradas por bandidos e até por um cantor pop.

Essas gangues defendiam a cidade, mas também tocavam o terror. Podiam entrar na casa de alguém e confiscá-la. Matavam cidadãos de descendência sérvia. Sequestravam civis para cavarem trincheiras, uma atividade extremamente perigosa num local repleto de franco-atiradores. Chegou num ponto em que o próprio governo Bósnio, que finalmente conseguira montar um exército, teve que dar um basta.

Joe Sacco não só conta a história, mas também faz o perfil de cada um dos líderes de guanges, que se tornaram verdadeiros astros pop. Entre eles o surpreendente caso de Jusuf Prazina Aka Juka, um bandido que fora atingido num tiroteio antes da guerra e andava com muletas. Mesmo com a dificuldade de movimento, era um dos mais cruéis e mais populares, conquistando a admiração de milhares de fãs e seguidores, que embarcavam com ele nessa jornada de sangue e atrocidades.

É essa guerra sem mocinhos que Joe Sacco narra em seu álbum.

sexta-feira, novembro 27, 2020

Corra, Lola, corra!

 


Corra, Lola, corra é um filme alemão dirigido por Tom Tykwer cujo roteiro é todo construído a partir de conceitos da teoria do caos.
O princípio básico da teoria do caos é a dependência sensível das condições iniciais. Ou seja, pequenas alterações no início de um processo podem provocar grandes alterações lá na frente. A história é toda construída, nos mínimos detalhes a partir desse conceito.
No filme, Lola entra em uma loja para comprar cigarros e tem sua motoneta roubada. Isso faz com que ela se atrase para um encontro com o namorado, que está transportando dinheiro de um traficante. Esse atraso faz com que ele decida pegar o metrô, onde acaba esquecendo o saco com o dinheiro, que é roubado por um mendigo.
Agora Lola tem 20 minutos para conseguir 100 mil marcos antes que o namorado seja morto. A trama acompanha a correria da personagem tentando resolver a situação: ela quase é atropelada, passa por diversas pessoas (e vemos em flashs como será o futuro de cada uma dessas pessoas).
O plano não dá certo e o filme volta ao início, ao momento em que Lola está recebendo a ligação do namorado.
Esse roteiro em looping permite observar como pequenas alterações vão provocando mudanças: é a mulher que, na versão anterior iria enveredar pela bebedeira e perder o filho e agora ganha na loteria e se torna rica, é o homem que bateu o carro na primeira versão e não bate... a corrida de Lola agora vai provocando alterações por onde passa como se ela fosse um efeito borboleta.
Há um outro filme sobre o assunto, com o título óbvio de Efeito borboleta, mas Corra Lola é muito mais interessante pela complexidade da trama e por mostrar como as alterações vão ocorrendo em diversas escalas (no filme Efeito borboleta as alterações ocorrem de maneira limitada, geralmente centradas no protagonista).
Além disso, a linguagem do filme é caótica, com corte rápidos, misturando cenas live action com animações, flashs fotográficos até jogos eletrônicos.
Corra Lola é um dos melhores exemplos de como teorias científicas podem ser usadas como base para filmes.  

Biocyberdrama: um universo em quadrinhos

 


Mozart Couto é dos mais importantes desenhistas de quadrinhos do Brasil. Seu traço anotomicamente perfeito ilustrou algumas das melhores histórias nos gêneros fantasias e ficção científica da HQB. Edgar Franco é um dos nomes fundamentais dos quadrinhos poéticos filosóficos, um gênero surgido em nosso país que teve grande destaque a partir da década de 1990 através de fanzines e publicações alternativas. Seu traço flerta com o onírico mostrando figuras impossíveis em cenários surreais. A junção desses dois talentos tão diferentes deu origem ao Biocyberdrama, um dos mais importantes álbuns de quadrinhos lançados em 2013.
A própria origem da publicação é uma saga. Em 2000, influenciado pelas ideias de artistas e filosóficos que tratam da pós-humanidade, Edgar Franco produziu o fanzine Biocyberdrame e enviou para várias pessoas. Uma delas foi Mozart Couto, que adorou a ideia e propôs uma parceria, o que deu origem a um primeiro álbum, com o primeiro capítulo. Os outros sete capítulos levaram 12 anos para serem feitos e reunidos na edição publicado este ano pela editora UFG. Uma edição, aliás, que faz juz ao conteúdo: um papel interno de alta gramatura, uma capa em policromia com um emblemático desenho de Mozart e uma sobrecapa em PB que se fecha sobre as páginas, formando um box.

A maioria dos leitores de quadrinhos tende a ir direto para a história, mas nesse caso, vale a pena parar no início e ler o Prefácio de Edgar Franco, no qual ele disserta sobre a fundamentação teórica da obra. Em um texto agradável, é apresentado todo um fundamento que permite uma leitura muito mais aprofundada da HQ e dá a dimensão do universo e da mitologia criada por ele – talvez o aspecto mais impressionante dessa HQ cheia de predicados.
Franco explica que os membros artificiais estão se tornando cada vez mais perfeitos. Cientistas e artistas defendem a possibilidade de transplantar a consciência para um chip de computador e tornar-se imortal, num movimento que foi batizado de Extropy.  “Vivemos em um momento de ruptura do humano, o qual nos compele a abrir os olhos para as implicações morais, éticas, socioculturais das mudanças drásticas de comportamento, percepção e paradigmas, que vêm atreladas às inovações nos campos da biotecnologia, da cibernética, da robótica, da telemática e da comunicação”.
A partir dessa percepção, Franco criou um universo pós-humano em que o mundo se divide em três grupos: humanos resistentes, tecnogenéticos e extropianos.
Os tecnogenéticos são fruto da hibridação entre humanos, animais e vegetais, permitidos pelo avanço da engenharia genética.
Os extropianos são pessoas que transmitiram sua consciência para corpos robóticos, vivendo, assim, eternamente.
Os resistentes são pessoas que resistem às mudanças extropianas e tecnogenéticas. Reproduzem-se sexualmente e imitam o modo de vida dos antepassados.

Cada um desses grupos tem detalhados os seus sub-grupos, método de reprodução, tecnologia, relação com a morte e organização social, uma mitologia que permite o surgimento de dezenas de histórias. A versão contada no álbum Biociberdrama é apenas uma dela. Nesse álbum acompanhamos o protagonista, Antônio (uma referência ao líder messiânico Antônio Conselheiro, de Canudos), um humano resistente indeciso entre o mundo tecnogenético e extropiano. A partir dessa base intimista, de conflito interno do personagem, visualizamos o mundo e suas relações sociais, políticas e culturais. Com o passar das páginas, no entanto, o drama pessoal torna-se também um drama social. Nessa sociedade perfeita de incrível avanço tecnológico, nesse paraíso terrestre, existe uma serpente: a intolerância. Essa intolerância se mostra na forma de atentandos terroristas, em especial dos tecnogenéticos contra os extropianos.
Franco namora com a teoria do caos ao mostrar como pequenos (e grandes) fatos vão provocando mudanças na sociedade e nos personagens. Os personagens, aliás, são tridimensionais e vão passando por mudanças ao longo da trama. Imperfeitos, traem, agem por vingança e muitas vezes por ganância (como no caso do peregrino que foge com as oferendas de um grupo que se destina a uma vila religiosa-resistente).
O leitor acompanha essa história que dura anos numa verdadeira saga e, ao mesmo tempo se surpreende com as reviravoltas, afeiçoa-se aos personagens e intriga-se com a complexidade imaginada pelo roteirista.
Sobre o desenho, um único porém: no primeiro capítulo Mozart Couto parecia estar influenciado, ou tentando aproveitar a onda dos mangás, um estilo interessante, mas que não tem absolutamente nada a ver com seu estilo. A partir do capítulo dois, o desenhista parece se livrar dessa influência e torna seu traço cada vez mais próximo do estilo que o tornou famoso na década de 1980 em revistas de editoras como a Grafipar.
Para os leitores mais interessados, vale a pena ler o Pósfacio, em que Edgar Franco destrincha todas as referências utilizadas em sua obra. Pós-moderno, o roteirista espalhou pela obra diversas citações, que vão do ciberartista brasileiro Eduardo Kac à artista francesa Orlane, que realiza operações plásticas em seu corpo com tomando como referência obras-primas da pintura, passando pelo escritor de ficção científica visionário Phillip K. Dick. Para os fãs, mais um agrado: o fanzine Biociberdrame, que deu origem a tudo vem completo, como anexo do volume.
Em suma: uma edição imperdível com dois mestres do quadrinho nacional.