sábado, novembro 21, 2020

Hipocondríacos

 

A moça irrompeu, esbaforida, pela porta, enquanto a enfermeira terminava de aplicar o soro.
    - Ei, não pode entrar agora!
    - Rafael, Rafael! Você está bem? Vim correndo quando soube que você estava doente.
    - Por favor, ainda não é o horário de visitas. Como a senhora conseguiu entrar? - perguntou a enfermeira, puxando a moça para fora.
    - Não, não me afaste do meu Rafael! Por favor, me diga: ele está bem?
    Nisso o doente se mexeu no leito, murmurando:
    - Beatriz? Você está aí?
    Foi o bastante. A mulher se desvencilhou dos braços da enfermeira e se jogou aos pés da cama.
    - Rafael, Rafael, você ainda está vivo?
    - Beatriz, você está aí? Eu não consigo vê-la...
    - Mas ele só está... - interveio a enfermeira.
    - Santo Deus, o que fizeram com o meu amado?! Você consegue me ouvir, querido?
    - Beatriz? É você mesmo? Agora que vou morrer, quero que saiba que te amo...
    - Oh, Rafael! Eu também te amo. Do fundo do meu coração...
    - Beatriz, por favor, me dê um último beijo.
    Houve um minuto de silêncio, ao fim do qual Beatriz pulou sobre ele, num último e ardoroso beijo de amor. A enfermeira tentou impedi-la, mas era impossível até mesmo saber quem era quem no meio dos aparelhos, seringas e tubos.
    - Querida, você sabe o quanto eu amo você. - garantiu ele, depois que se desgrudaram. Não chore por mim. Também quero que você arranje outro homem. Não perca sua juventude por mim...
    - Não, não me diga isso, meu amor, você vai sobreviver... E eu jamais terei outro homem...
    Ficaram em silêncio. Beatriz enxugava as lágrimas com um lenço.
    - Querida, agora que estou morrendo, acho que deveria saber de uma coisa. Lembra-se de Ana?
    - A Ana?
    - Sim, aquela estudava com você quando nos conhecemos...
    - Rafael, você não...
    - Eu tive um caso com ela.
    - Não, não acredito... não é possível!
    Ficou repetindo isso, balançando a cabeça em negativa, a enfermeira parada num canto, os olhos arregalados, sem saber o que fazer....
    - Beatriz... agora que estou morrendo, não faz mais sentido esconder meu caso com Maria...
    - A minha melhor amiga? Desgraçada!
    - Calma, foi coisa pequena: durou só dois anos...
    - Dois anos? Seu safado! Cretino!
    - Cretino, eu? Pensa que não sei do Paulo?
    Beatriz ficou estática.
    - Paulo?
    - Pensa que não sei? Tenho até fotos...
    - Seu cretino! - gritou a mulher e pulou no pescoço dele.
    - Gasp, gasp - fez o doente, envolvendo com as mãos o pescoço de Beatriz, que caiu no chão, sob ele.
    Rolaram pelo chão do hospital até perderem as forças e só então caíram nos braços um do outro, jurando:
    - Beatriz, eu te amo.
    - Também te amo, Rafael.
    A enfermeira ficou alguns instantes estarrecida, depois saiu do quarto, murmurando consigo:
    - Esses hipocondríacos... e era só uma infecção intestinal.

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