quinta-feira, fevereiro 11, 2021

Sombras da noite, de Stephen King

 


 

Em 1976, Stephen King era uma estrela em ascenção. Seu romance Carrie tinha sido sucesso, assim como o livro seguinte, Salem´s Lot (A hora do vampiro no Brasil). Parecia o momento certo para reunir uma série de contos escritos por ele e publicados em divesas revistas. Essa coletânea, como o título de Sombras da noite reunia 20 relatos curtos que mostravam desde um escritor imaturo e exagerado até um expert na escrita, que já dominava completamente alguns dos recursos narrativos que o tornariam célebre.

Esses contos eram escritos às pressas, nos horários de folga entre um emprego e outro, no cantinho da máquina de lavar do trailer onde a família morava. Conta-se que quando uma das crianças adoecia, Tabitha King, esposa do escritor, ordenava: “Rápido, Steve, pense num monstro”, anedota que mostra o quanto escrever era não só uma necessidade literária quanto uma necessidade financeira de aumentar os parcos recursos financeiros da família King.

No Brasil essas histórias foram publicadas em um volume de bolso em 2013 pela editora Objetiva.

Abaixo algumas considerações sobre os contos que mais se destacam no livro, para o bem ou para o mal.  

Jerusalem´s Lot, o conto que abre a coletânea tem o mesmo título de um romance de King (conhecido no Brasil como A hora do vampiro). Mas a semelhança termina aí. O romance se passa na década de 1970 e trata de um escritor que volta à sua cidade natal e descobre que ela é habitada por vampiros. Já o conto é uma narrativa lovecraftiana sobre um abolicionista que, em 1850, volta para sua cidade natal e descobre que seus antepassados participavam de um culto a uma entidade demoníaca. É uma mistura de Lovecraft com Bran Stocker – a narrativa é toda através de cartas. Parecia que King ainda estava procurando um estilo. Há trechos puramente lovecraftianos, como “A sra Cloris estava certa quando falou a respeito de sangue chamando sangue; e quão horrivelmente certa estava quando falou daqueles que vigiam e daqueles que guardam”.

Último turno é um exemplo de como King usava sua própria experiência para criar histórias (o que talvez explique o realismo de suas narrativas). Antes de se tornar um escritor famoso, ele trabalhara numa tinturaria e, durante um feriado, alguns funcionários haviam sido selecionados para limpar o porão – recebendo hora extra. King não fora selecionado, mas ouvira relatos dos colegas segundo os quais havia ratos do tamanho de gatos lá embaixo. Ele ampliara isso para alto muito mais assustador. Aqui já temos um ensaio do estilo que o tornaria célebre, como a narrativa entremeada de pequenos detalhes que a tornavam verossímil: “Hall desenvolvera o hábito de recolher um pequeno arsenal de latas de refrigerantes nas latas de lixo durante o intervalo de descanso. Atirava-as nos ratos nos momentos em que o trabalho andava mais devagar”.

Na mesma pegada está “A máquina de passar roupa”, também saída da experiência de King com um dos muitos empregos antes de se tornar famoso. Agora o terror vinha de uma máquina endemoniada. Embora já revelasse muitos dos méritos de King, revelava também um defeito que iria se aprofundar com a idade: a tendência a soluções exageradas.

Às vezes eles voltam é o melhor conto da antologia. Tem tudo que o melhor de King teria. Na história um professor de literatura é atormentado por uma tragédia pessoal: quando criança, o irmão foi morto por uma gangue de valentões. Agora, muitos anos depois, esses valentões parecem ter voltados como alunos. É a perfeita mistura de drama pessoal, personagens carismáticos e totalmente verossímeis e terror. É também um conto que mostra um texto bem elaborado com frases como “Sua própria mortalidade subitamente passou pelos seus ossos como uma corrente de ar frio por baixo da porta”.

Campo de batalha está longe de ser genial do ponto de vista narrativo, mas é um exemplo de como a necessidade de ganhar dinheiro extra com os contos fazia King ter boas ideias. Na trama um assassino profissional é vítima de uma vingança curiosa: alguém lhe manda um baú de soldados americanos do Vietnã. Acontece que os soldadinhos, helicópteros e tudo mais funcionam como se tivesse vida e têm como objetivo matar o assassino. É uma narrativa frenética, com ritmo de quadrinhos (e poderia ser facilmente adaptada para personagens como o Demolidor).

Na mesma pegada está O ressalto. Um jogador de tênis decadente começa a namorar com a mulher de um chefão mafioso e este arma uma arapuca para levá-lo à prisão colocando cocaína em seu carro. Mas há uma alternativa: ele poderá se livrar se contornar o prédio andando por ele pelo lado de fora, a 43 andares acima do chão. É uma narrativa que mostra que king sabia lidar com o gênero policial.  

Primavera vermelha é uma tremenda história de serial killer, com um final supreendente – prova cabal de que King sabe manejar a narrativa em qualquer tema.

O homem que adorava flores, o conto mais surpreendente da coletânea, é Stephen King brincando de Ray Bradbury (o que mostra o quanto o autor pode ser eclético). A narrativa é focada num rapaz apaixonado, que compra flores para a namorada numa bela noite de primavera: “Não era um rosto extraordinário, mas naquela noite, naquela avenida, em maio de 1963, ele estava bonito, e a velha se descobriu pensando, com um momento de doce nostalgia, que na primavera todos podem ficar bonitos”. A narrativa idílica acompanha o protagonista por um verdadeiro passeio de enlevo pelas ruas de Nova York, até a virada final, que leva tudo na direção do terror.

A saideira é o segundo conto da coletânea que se passa em Salem´s Lot. Mas agora não era a Salem´s Lot do primeiro conto, mas a do livro A hora do vampiro. Saem os demônios lovecraftianos e entram os chupadores de sangue. Na história, um velho (o narrador) está no bar de um amigo abrigando-se contra uma tempestade de neve quando entra um homem pedindo ajuda. Inadevertidamente ele pegou o caminho para Salem´s Lot. Ele foi buscar ajuda enquanto sua esposa e sua filha ficaram lá. É uma boa narrativa de terror e suspense, com um toque de “causo” típico de algumas da melhores histórias de King. 

O último degrau da escada é o mais tocante conto da coletânea. Não há vampiros, máquinas assassinas, zumbis. O terror surge das pessoas e seus dramas. E é também o conto em que King revela como pode usar com maestria todos os itens da caixa de ferramentas da escrita. Sabemos que o narrador recebeu uma carta de sua irmã, mas não sabemos o conteúdo da carta. Então, ele começa a contar sobre uma brincadeira que faziam quando crianças, subindo no alto de um celeiro e pulando sobre um monte de feno. sabemos que algo terrível irá acontecer, mas não sabemos o que – e quando algo terrível finalmente acontece não é o que esperamos. É o conto que melhor exemplifica o king especialista em dramas humanos.

As crianças do milharal é King abordando um dos seus temas prediletos: o fanatismo religioso. Na história, crianças criam uma versão deturpada da Bíblia e matam todos os adultos de uma cidadezinha. E todos que fazem 19 anos são mortos. É um triller de suspense com personagens bem desenvolvidos. Se abordasse um pouco mais o drama pessoal dos mesmos poderia tranquilamente ser transformado em um romance.

O pior conto da coletânea, de longe, é O homem do cortador de grama. É uma narrativa sem pé nem cabeça sobre um homem que contrata uma empresa para limpara o seu quintal e se depara com um cortador que funciona sozinho e um funcionário que, nu, corre atrás dela comendo a grama. Por alguma razão desconhecida, algum produtor de Hollywood achou que isso daria um bom filme. O diretor Brett Leonard, diante do conto sem pé nem cabeça, resolveu fazer um filme completamente diferente da história original (no Brasil esse filme foi nomeado O passageiro do futuro).

King ficou tão furioso com as alterações em sua história que resolveu dirigir seu próprio filme, baseado no segundo pior conto da antologia, Caminhões. Na história, carros, caminhões e outros veículos se rebelam contra os humanos. A trama é focada num grupo de sobreviventes sitiados num posto de gasolina. O filme derivado desse conto ganhou o nome de Maximum Overdrive (no Brasil O comboio do terror). Ficou conhecido com um dos filmes de terror mais

toscos de todos os tempos.

Sem comentários: