Há algo de irônico em Ray Bradbury: embora seja um dos mais famosos escritores de ficção científica de todos os tempos, sua obra não é uma ode ao futuro e ao desenvolvimento da tecnologia. Ao contrário, seus livros ecoam diretamente o saudosismo de uma época mais simples.
E de espaço, antologia
publicada no Brasil pela editora Hemos em 1978 é um exemplo disso.
O livro reúne 16
contos de Bradbury e demonstram bem o seu estilo de poético tanto nos temas
quanto na narrativa.
As histórias vão
do condutor de bonde que faz uma última viagem com os meninos antes de seu veículo
ser substituído pelos ônibus até o homem que leva sua família para Marte
fugindo da guerra nuclear na Terra (tema alias, presente em mais de um conto).
Mas talvez um
dos melhores exemplos do estilo do autor seja “Pilar de fogo”.
A história se
passa num futuro longíncuo em que as pessoas mortas não são mais enterradas,
mas cremadas. E todos os cemitérios são esvaziados e os corpos queimados numa
medida de higienização. O protagonista é o último cadáver ainda intacto, que se
levanta e passa a andar entre os humanos.
A poesia já
aparece nos primeiros parágrafos: “Ele andava sobre a terra, tinha saído da terra.
Mas estava morto. Não podia respirar. Era impossível. Andava sobre a terra,
tinha saído da terra. Mas estava morto. (...) Queria ter lágrimas, mas não
podia fazê-las vir, tampouco. Tudo o que sabia é que estava de pé, estava
morto, e não deveria estar andando!”.
Nesse mundo
antisséptico, tudo que pudesse assustar ou incomodar as pessoas havia sido eliminado. Livro de escritores
como Edgar Alan Poe e Lovecraft tinham sido queimados.
Mais do que uma
história de zumbi, Bradbury usa o tema para tratar de temas que lhe são caros:
o medo de uma sociedade anti-séptica, em que tudo capaz de incomodar deveria
ser eliminado e sua visão de que isso seria uma distopia.
O mesmo tema
aparece em “Fuga do tempo”, em que um professor leva seus alunos, através de
uma máquina do tempo, para observar os costumes bárbaros do passado: “O Dia das
Bruxas, o ápice do horror. Esta foi a era da superstição. Mais tarde baniram os
irmãos Grimm, fantasmas, esqueletos, e toda essa baboseira. Vocês, crianças,
graças a Deus, foram criadas em um mundo anti-séptico, sem sombras e sem
fantasmas”.
“O Pedestre” é
provavelmente o o conto mais importante da antologia, por ser a história que
deu origem ao mais famoso livro de Bradbury, Fahreit 451. Na história, um homem
é o último a caminhar pela cidade. Todos os outros passam o dia andando em
carros e as noites em casa, assistindo televisão: “Pentrar naquela quietude que
era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de novembro, pousar os pés
naquela sólida calçada de concreto, pisar nas fendas cheias de mato, e andar,
de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava
de fazer”.
No final, Mead é
abordado por um carro de polícia e preso por seu comportamento anti-social. Resumido
nesse conto está toda a filosofia por trás da distopia do autor: um mundo
anti-séptico, em que pessoas são hipnotizadas pela tela de TV e comportamentos
considerados anti-sociais, como caminhar pelas ruas da cidade é considerado um
crime.
Mas, além de um
poeta da prosa e um filósofo, Bradbury era tamém um autor que sabia criar boas
tramas.
“A mulher
gritando” é um exemplo disso.
Na história uma
garotinha ouve uma mulher gritando num terreno baldio e imagina que tenha sido
enterrada ali. Corre para avisar o pai e mãe, mas estes não acreditam nela e
acham que se trata apenas de uma brincadeira. “Está bem”, diz o pai. “Vamos
desenterra a mulher depois do almoço” e segue-se uma narrativa extremamente
tensa, em que o pai e mãe falam de futulidades enquanto a menina sente que a
cada minuto pode ser a diferença entre a vida e a morte da mulher enterrada.
O conto é um
primor não só pela trama bem bolada (com um gancho jogado no meio de uma
conversa fútil que será fundamental no fecho da história), mas também pela
abordagem. Bradbury escreve o conto como se fosse uma redação escrita pela própria
menina: “Meu nome é Margaret Leary e tenho dez anos de idade, e estou no quinto
ano da escola pública. Não tenho irmãos nem irmãs, mas tenho um bom pai e mãe,
só que eles não me dão muita atenção. E de qualquer maneira, nunca pensamos que
teríamos algo a ver com a mulher assassinada”.
Filósofo, poeta,
criador de narrativas bem elaboradas e inteligentes, Bradbury é daquelas
leituras essenciais para qualquer apreciador de ficção científica, como
demonstra o livro E de espaço.
Sem comentários:
Enviar um comentário