quinta-feira, junho 17, 2021

E de espaço, de Ray Bradbury

 


Há algo de irônico em Ray Bradbury: embora seja um dos mais famosos escritores de ficção científica de todos os tempos, sua obra não é uma ode ao futuro e ao desenvolvimento da tecnologia. Ao contrário, seus livros ecoam diretamente o saudosismo de uma época mais simples.

E de espaço, antologia publicada no Brasil pela editora Hemos em 1978 é um exemplo disso.

O livro reúne 16 contos de Bradbury e demonstram bem o seu estilo de poético tanto nos temas quanto na narrativa.

As histórias vão do condutor de bonde que faz uma última viagem com os meninos antes de seu veículo ser substituído pelos ônibus até o homem que leva sua família para Marte fugindo da guerra nuclear na Terra (tema alias, presente em mais de um conto).

Mas talvez um dos melhores exemplos do estilo do autor seja “Pilar de fogo”.

A história se passa num futuro longíncuo em que as pessoas mortas não são mais enterradas, mas cremadas. E todos os cemitérios são esvaziados e os corpos queimados numa medida de higienização. O protagonista é o último cadáver ainda intacto, que se levanta e passa a andar entre os humanos.

A poesia já aparece nos primeiros parágrafos: “Ele andava sobre a terra, tinha saído da terra. Mas estava morto. Não podia respirar. Era impossível. Andava sobre a terra, tinha saído da terra. Mas estava morto. (...) Queria ter lágrimas, mas não podia fazê-las vir, tampouco. Tudo o que sabia é que estava de pé, estava morto, e não deveria estar andando!”.

Nesse mundo antisséptico, tudo que pudesse assustar ou incomodar  as pessoas havia sido eliminado. Livro de escritores como Edgar Alan Poe e Lovecraft tinham sido queimados.  

Mais do que uma história de zumbi, Bradbury usa o tema para tratar de temas que lhe são caros: o medo de uma sociedade anti-séptica, em que tudo capaz de incomodar deveria ser eliminado e sua visão de que isso seria uma distopia.

O mesmo tema aparece em “Fuga do tempo”, em que um professor leva seus alunos, através de uma máquina do tempo, para observar os costumes bárbaros do passado: “O Dia das Bruxas, o ápice do horror. Esta foi a era da superstição. Mais tarde baniram os irmãos Grimm, fantasmas, esqueletos, e toda essa baboseira. Vocês, crianças, graças a Deus, foram criadas em um mundo anti-séptico, sem sombras e sem fantasmas”.

“O Pedestre” é provavelmente o o conto mais importante da antologia, por ser a história que deu origem ao mais famoso livro de Bradbury, Fahreit 451. Na história, um homem é o último a caminhar pela cidade. Todos os outros passam o dia andando em carros e as noites em casa, assistindo televisão: “Pentrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de novembro, pousar os pés naquela sólida calçada de concreto, pisar nas fendas cheias de mato, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer”.

No final, Mead é abordado por um carro de polícia e preso por seu comportamento anti-social. Resumido nesse conto está toda a filosofia por trás da distopia do autor: um mundo anti-séptico, em que pessoas são hipnotizadas pela tela de TV e comportamentos considerados anti-sociais, como caminhar pelas ruas da cidade é considerado um crime.

Mas, além de um poeta da prosa e um filósofo, Bradbury era tamém um autor que sabia criar boas tramas.

“A mulher gritando” é um exemplo disso.

Na história uma garotinha ouve uma mulher gritando num terreno baldio e imagina que tenha sido enterrada ali. Corre para avisar o pai e mãe, mas estes não acreditam nela e acham que se trata apenas de uma brincadeira. “Está bem”, diz o pai. “Vamos desenterra a mulher depois do almoço” e segue-se uma narrativa extremamente tensa, em que o pai e mãe falam de futulidades enquanto a menina sente que a cada minuto pode ser a diferença entre a vida e a morte da mulher enterrada.

O conto é um primor não só pela trama bem bolada (com um gancho jogado no meio de uma conversa fútil que será fundamental no fecho da história), mas também pela abordagem. Bradbury escreve o conto como se fosse uma redação escrita pela própria menina: “Meu nome é Margaret Leary e tenho dez anos de idade, e estou no quinto ano da escola pública. Não tenho irmãos nem irmãs, mas tenho um bom pai e mãe, só que eles não me dão muita atenção. E de qualquer maneira, nunca pensamos que teríamos algo a ver com a mulher assassinada”.

Filósofo, poeta, criador de narrativas bem elaboradas e inteligentes, Bradbury é daquelas leituras essenciais para qualquer apreciador de ficção científica, como demonstra o livro E de espaço.   

Sem comentários: