segunda-feira, julho 26, 2021

Urupês, de Monteiro Lobato

 


Monteiro Lobato é mais conhecido pela sua literatura infanto-juvenil. Ele, entretanto, tem uma extensa e realmente impressionante literatura para adultos. E, nesse nicho, Urupês, lançado originalmente em 1918, é, sem sombra de dúvidas, sua obra-prima.

O livro é fruto direto do texto “Velha praga”, que integra o volume. Indignado com a devastação provocada pelas queimadas no vale do Paraíba, prática que destruía a vegetação local e empobrecia o solo, Lobato escreve o texto e envia para a seção “Queixas e reclamações” do jornal O Estado de São Paulo.

Os editores gostaram tanto do texto que resolveram publicá-lo como artigo. O impacto foi tão grande que animou o autor a lançar-se como escritor.

Vendeu a fazenda, herança do avô, comprou a Revista do Brasil e lançou Urupês. Mandou imprimir mil exemplares, na esperança de conseguir vender tudo em cinco anos. Pouco tempo depois, já cogitava uma segunda tiragem. Agumas livrarias já haviam repetido o pedido três vezes. Quando Rui Barbosa citou a obra em um dos seus discursos, as vendas estouraram. Antes de um ano, as tiragens já estavam na casa dos 4 mil exemplares. Em 1921, o livro já tinha vendido 21 mil exemplares, um best seller absoluto para um país em que a maioria da população era analfabeta.

Urupês reúne dois artigos (o velha Praga e o próprio Urupês, no qual descreve o caboclo, criando a figura eterna do Jeca-tatu), contos trágicos (Lobato chegou a pensar em nomear a obra como Dez mortes trágicas) e humorísticos. A riqueza de abordagens mostra o quanto o escritor era versátil.

Todos os contos têm a característica de “causos” do interior, como se Lobato os tivesse ouvido diretamente dos caboclos e apenas transpassado para as páginas.

“O engraçado arrependido” é a história de um rapaz que não faz nada da vida a não ser contar pilhérias: “Como fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa da veia cômica, e com ela amanhara casa, vestuário e o mais. Sua moeda corrente eram micagens, pilhérias, anedota de inglês, tudo que bole com os músculos faciais do animal que ri”.

Usando o dom da graça, Pontes consegue pendurar as contas, consegue que alguém lhe pague as dívidas. Chega num ponto, só de ouvir seu nome “acendia-se logo o estopim das fundegadelas”.

Mas pontes cansa dessa vida. Tenta endireitar-se, arranjar emprego. Todos acreditam que se trata de mais um de suas insuperáveis pilhérias. Suas tentativas de arranjar um emprego são recebidas com gargalhadas e comentários sobre como ele não se emendava, o que faz com que o humor se torne tragédia. Mas até a tragédia se torna motivo de riso.

“Colcha de retalhos” é, provavelmente, o melhor conto numa antologia que não tem ponto baixo.  Na história, um fazendeiro procura um sitiante para propor-lhe um trabalho. O tal sitiante viera da cidade e se embrutecera: “A vida lhes correu áspera na luta contra as terra ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo, o velho, amuado, nunca espichou o nariz fora do sítio”.

O velho recusa a oferta de emprego, mas a visita vale por conhecer-lhe a sogra, uma senhora simpática, que costura uma colcha de retalhos com pedaços dos vestidos da neta descartados. A ideia é que essa colcha seja o presente de casamento para a menina.

O conto une a descrição bucólica da natureza que tanto caracterizou o melhor da proza de Lobato com expressões caipiras e diálogos vivos de frescor natural, que antecipavam o modernismo: “Mecê é gabola porque nunca padeceu doença – nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova”. É também um tremendo drama humano simbolizado pela colcha de retalhos.

“A vingança da peroba” mistura humor e drama. Conta a história de dois vizinhos, Os Porunga, gente sensata e trabalhadora e os Nunes, cujo patriarca, decaíra em razão de muita cachaça na cabeça. Numa casa cheia de mulheres, tivera um único filho, Pernambi, um garoto de sete anos que desde cedo fora ensinado a beber cachaça e a andar com faca de ponta na cintura: “Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta, não é homem!”.

O drama se estabelece quando Nunes resolve derrubar uma peroba que dividia o terreno com os Porunga (e, portanto, pertencia aos dois) para fazer um monjolo. O resultado, claro, é trágico.

Capa da primeira edição. 


“O mata pau” é outro conto que resume bem as características da melhores histórias lobatianas. A história inicia com o narrador cavalgando ao lado do capataz quando se depara com algo que chama sua atenção: “Que raio de árvore é essa?”. “Não vê que é um mata-pau?”, esclarece o outro. O mata-pau é uma plantinha de nada, que surge nos galhos das árvores e parece um cipó. A arvore não dá pela coisa. “Só quando o malvado ganha alento e garra de engrossar, é que a árvore sente a dor dos apertos na casca. Mas é tarde. O poderoso daí em diante é o mata-pau. A árvore morre e deixa dentro dele a lenha podre”.

O episódio torna-se um símbolo para o causo contado pelo capataz, sobre Estevão Queixo d´Anta. Quando chegou a idade, Estevão quis casar. “Passarinho cria pena é para voar. Se você já é homem, case”, respondeu o velho pai, em sua sabedoria. A moça pretendida era uma feiosa menina de 13 anos, da família dos Poca. “Case. Mas ouça o que eu digo. Os Poca não são boa gente. Os machos ainda servem, mas as saias não valem nada. Laranjeira azeda não dá laranja lima”.

Estevão teima, casa e monta fazenda. Uma noite, uma criança aparece em seu quintal, chorando. Pergunta daqui, pergunta dali, ninguém sabe quem são os pais. Assim, Estevão resolve adotá-la. O resultado já estava ali entrevisto, na história inicial. “Não é só no mato que há mata-paus!”, conclui o narrador, ao que o capataz retruca, o olho parado, pensativo: “Não é por gabar, mas vosmecê disse aí uma palavra que merece escrita. É tal e qual...”.

Esse tipo de narrativa, refletindo diretamente o imaginário e o jeito de falar das pessoas do interior era algo totalmente revolucionário para a época. Mais revolucionário ainda é o texto que fecha o volume e dá nome ao livro.

Urupês é a desconstrução da imagem idealizada do caboclo feita pelos escritores românticos: “O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de caboclismo. O cocar de penas passou a chapéu de palha; a ocara virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada”. Nessa imagem de quem nunca havia se entranhado no interior, o caboclo era uma figura altiva, orgulhosa, indomável, de virilidade heroica.

Lobato, que morou anos no interior e teve fazenda, sabia que a imagem não combinava com o Jeca-tatu, pobre coitado que passa seus dias acocorado, totalmente impassível às mudanças no mundo. “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade”, escreve Lobato.

Sua casa de sapé e lama faz rir aos bichos construtores. De mobília só tem um banco de três pernas – para os hóspedes. Três pernas permite o equilíbrio, inútil portanto, colocar uma quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão.

Sacerdote da grande lei do menor esforço, o Jeca, ao ver uma parede caindo, coloca nela uma imagem de Nossa senhora. “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?” “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?” “Mas, criatura, a madeira está à mão, o cipó é tanto” “Não paga a pena”.

Posteriormente, Lobato reveria sua imagem do Jeca, ao perceber que sua inação era fruto de vermes e da insegurança de saber que no dia seguinte poderia ser expulso da terra. Mas, se lermos o texto em conjunto com os contos, percebemos que, já ali, nesse livro clássico, o escritor já revelava um grande carinho e respeito pelo caboclo e suas histórias.   

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