Sonhos elétricos é uma antologia de contos de PKD com
histórias que deram origem à série Eletric Dreams, da Amazon.
Como as duas obras são intimamente relacionadas, o ideal é ler
o livro e assistir a série. Ou o contrário. E comparar. Algumas histórias foram
tão modificada que parecem obras diferentes.
O livro abre com “Peça de exposição”, que na série deu
origem ao episódio “Real life”. Na obra literária, um historiador do futuro faz
uma exposição, com uma casa típica de uma família norte-americana do século XX.
Mas, em determinado momento, ao entrar na peça, acaba se vendo no passado. O
conto traz a principal característica de Dick: nos faz duvidar da realidade.
Mas o grande diferencial desse conto é o final, com uma tremenda ironia do
destino. É uma trama muito diferente do episódio que foi ao ar, mas ambos são
igualmente interessantes.
“Autofab” tem a mesma premissa do episódio: após uma guerra
que devastou o planeta, fábricas automáticas continuam produzindo amenidades
enquanto exaurem a Terra dos seus últimos recursos. Um plano dos sobreviventes
faz com que as várias unidades entrem em guerra, destruindo umas às outras. Mas
os humanos percebem que tudo deu terrivelmente errado quando descobrem que a
nova realidade poderá fazer com que a fábrica se expanda por todo o universo. É
um conceito muito mais corajoso do que o do episódio da série, que usa os robôs
como forma de questionar a realidade. Uma fábrica que perdeu seu propósito e
resolve se expandir por todo o universo é um conceito muito mais assustador.
“Humano é” é um dos poucos episódios que ficaram melhores na
série do que no livro. Na história, um pesquisador visita outro planeta e é
substituído por um dos metamorfos que habitam o local. Dick cria uma boa
história, mas explora pouco os personagens, algo que é resolvido no episódio
dirigido por Jessca Mecklenburg.
“Crazy Diamond” é o pior episódio de Eletric Dreams e ao ler
o conto que deu origem ao episódio descobrimos porque: o diretor Tony Grisoni
não aproveitou praticamente nada do conto “Argumento de venda” e fez uma
história sem pé nem cabeça. O conto de dick, ao contrário, traz uma reflexão
interessante sobre a falta de limite da publicidade. Na história, um homem
atende a porta e encontra um robô, que está vendendo a si mesmo. O robô destrói
partes da casa apenas para consertá-las depois e tem ordens de não sair do
local até que a venda seja efetuada.
“O fabricante de gorros” é um caso interessante. O conto e o
episódio parecem apresentar mensagens totalmente diferentes. O conto original é
um libelo contra o estado policialesco, em que até o pensamento das pessoas é
controlado por mutantes telepatas. Na história, os simples fato de usar um
gorro que impeça os telepatas de lerem sua mente já é considerado crime,
situação resumida nos pensamentos de um dos personagens: “Iam leva-lo diante de
um conselho de Liberação. Nenhuma acusação viria à tona: caberia a ele defender
a si mesmo, provar que era leal. Será que ele havia feito alguma coisa errada
na vida?”. Ao transformar em personagem principal uma telepata, o seriado
parece justificar a invasão de privacidade.
“São e salvo” é o único caso em que o episódio é
decididamente melhor que o material original. No conto original, “Foster, você
já morreu”, um garoto sonha ter uma casa subterrânea que garantiria a sobrevivência da família no caso
de uma guerra nuclear. Mas esbarra no antagonismo do pai, que não acredita no
perigo atômico e acredita que é tudo uma estratégia de venda. O conto refletia
diretamente a paranóia da guerra fria. Os diretores Kalen Egan e Travis Sentell
escreveram o episódio durante a campanha à presidência dos EUA de 2016 e
perceberam que seria impossível escapar de meia dúzia de ressonâncias
involuntárias e, assim, resolveram assumir essas ressonâncias. Na introdução,
eles escrevem que a obra de PKD sempre será relevante porque ele via o mundo e
as pessoas ao redor com uma clareza ímpar. Ao captarem a essência da obra de
dick, eles produziram um dos melhores episódios de Eletric Dreams e
demonstraram o quanto a natureza humana permanece a mesma nos seus piores
aspectos.
O conto “A coisa-pai” é muito parecido com o episódio que
foi ao ar: um garoto descobre que seu pai foi substituído por um ser
extraterrestre e que isso é apenas parte de um plano maior de invasão. Mas o
conto é curto, de modo que a versão televisiva, embora seja muito fiel ao
material original, tenha aprofundado mais vários aspectos, criando inclusive
uma alegoria interessante (no episódio, o casal de pais está se separando).
Outro episódio muito fiel, mas que aprofunda o material
original é “O planeta impossível”. Na introdução ao conto, o diretor David Farr
escreve: “Um dos maiores talentos de Philip K. Dick é que mesmo suas histórias
mais simples invocam temas atemporais. O planeta impossível lida com perda,
passado, memória e o terror que nos provoca a possibilidade de que a vida na
terra esteja condenada. Questiona o que significa ser humano e conta com um
robô que talvez seja emocionalmente mais leal do que qualquer um dos seus
protagonistas mortais. Com isso ele também questiona o que significa ter uma
alma”. Na história, uma velha quer visitar a Terra, o planeta original, que, na
versão oficial não existe e ninguém sabe onde fica. Dois trambiqueiros donos de
uma nave resolvem aproveitar a situação para tirar dinheiro da mulher levando-a
um planeta qualquer. Mas o final deixa uma dúvida: será que eles não estariam
de fato na terra?
“O enforcado desconhecido” é um dos casos mais
interessantes. Conto e episódio são muito diferentes. Em comum entre eles
apenas um homem enforcado em local público que parece não chamar a atenção de
ninguém. Mas, enquanto Dick transforma essa premissa numa tremenda trama de
ficção científica, o episódio cria uma reflexão política sobre como as pessoas
têm sua sensibilidade amortecida pela propaganda política. No final, embora as
histórias sejam muito diferentes, a essência está presente nos dois. Em uma
época como a nossa, em que 600 mil mortes não parecem causar a menor comoção, é
tanto um conto quanto um episódio obrigatório.
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