Durante anos os fãs de Sandman esperaram uma série ou um
filme do Mestre dos Sonhos. Mas, enquanto personagens secundários da série,
como Lúcifer, ganhavam sua versão áudio-visual, Morpheus parecia nunca ter sua
chance na tela, seja pequena ou grande.
Agora descobrimos porque isso aconteceu. Neil Gaiman esperava
a possibilidade de ter controle sobre sua criação, o que finalmente aconteceu
com a série recentemente lançada pela Netflix , na qual Gaiman atuou como
produtor executivo, roteirista e consultor. Há relatos de que ele interferia
até mesmo na direção de atores, repreendendo constantemente o ator: Tom
Sturridge: “Você não é o Batman!”.
O resultado é uma extremamente fiel aos quadrinhos a ponto de
muitas vezes parecer que estamos vendo uma versão animada dos quadros.
Em alguns casos, a versão do seriado é melhor que a dos
quadrinhos, pois o tempo da série, sendo maior que a de uma revista de 24
páginas, permite que os roteiristas consigam explorar melhor os personagens e
situações.
Exemplo disso é o capítulo cinco, que adapta a história 24
horas. Até então o seriado vinha trabalhando com várias narrativas paralelas.
Nesse episódio, a ação foca apenas na lanchonete na qual está o Doutor Dee com
o rubi dos sonhos, criando uma uma utopia às avessas em que todas as regras de
civilidade são dispensadas. A estratégia, inteligente, cria uma sensação de
claustrofobia, como se o expectador estivesse ali, preso junto com os clientes
da lanchonete. Detalhe: a atuação de David Thewlis é fenomenal como Doutor Dee.
Outro episódio memorável – e que também acaba sendo melhor
que a HQ, é O som das asas dela, que mostra o encontro de Sonho com sua irmã, a
Morte. A atuação de Kirby Howell-Baptiste é marcante e dá o tom de alegria e
acolhimento que a personagem exige. Além disso, sequências como a do violinista
ganham muito quando o receptor consegue ouvir o som. De forma inteligente, os
roteiristas conseguiram ligar esse episódio a um conto de Sandman no qual ele
encontra o homem que não morre. As duas histórias têm o mesmo tom emotivo e
sensível.
Embora o seriado seja muito fiel aos quadrinhos, temos visto
muitas pessoas reclamando das “mudanças”, que na visão delas “estragariam” essa
versão. Neil Gaiman tem dito que quem
está reclamando das mudanças ou não leu, ou não entendeu os quadrinhos – e
minha tendência é concordar com ele. Todas as mudanças no seriado já estavam
implícitas na obra original.
Nos quadrinhos, os perpétuos são mostrados como seres
antropormóficos que são vistos de forma diferente ao longo da série: negros,
brancos, asiáticos. Aliás, até mais que antropormóficos, já que em um dos
episódios mais célebres, “Um sonho de mil gatos”, Morpheus é mostrado como um
gato. Diante disso, é difícil entender quem reclama que a Morte seja
interpretada por uma atriz negra. Ela poderia ser interpretada por uma atriz
latina, asiática, marciana – e ainda continuaria sendo a Morte. Aliás, Gaiman
tem afirmado que escolheu a atriz pelo teste de câmera: ela foi quem se saiu
melhor, o que percebemos por sua atuação soberba no episódio seis.
Em alguns casos as mudanças foram uma necessidade da
produção, como aconteceu com John Constantine, que já estava comprometido com
outra série e não poderia ser usado em Sandman. Gaiman trocou-o por Joana
Constantine, uma personagem que já tinha aparecido nos quadrinhos. Aliás, a
personagem agradou a ponto de muitos estarem sugerindo uma série prequel com
ela – essa proposta tem todo o meu apoio.
Outra crítica comum é dizer que o seriado estaria forçando na
lacração, como em colocar Joana Constantine como lésbica. Quem faz essa crítica
esquece que Sandman foi o primeiro quadrinho do mercado de comics a mostrar uma
personagem abertamente lésbica, isso no número 6 da revista, portanto no
primeiro arco.
Sejam por necessidade ou não, a maioria das mudanças ou é
indiferente ou acrescentou algo ao material original.
Em tempo: Sandman
parece estar agradando. O seriado está em primeiro lugar na Netflix em
dezenas de países. O lado ruim disso é que com certeza
agora os quadrinhos ficarão ainda mais caros. Quem tem a coleção original da
editora Globo, como eu, que guarde bem guardado.
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