quinta-feira, novembro 24, 2022

O troll

 


Beto Norberto era um troll. Seu reino era seu computador. Era através da internet que ele aterrorizava dezenas de pessoas. Gostava de pensar em si como alguém invencível, que provocava pânico por onde passava enquanto digitava freneticamente com seus dedos sujos de Doritos. 
Qualquer um poderia ser sua vítima. Especialmente aqueles que se achavam vencedores. Ah, bando de patifes, quando estavam mais seguros de suas conquistas, o grande Beto Norberto aparecia e mostrava o quanto eram pequenos, frágeis e insignificantes, para delírio da imensa legião de fãs, que aplaudiam de pé esse linchamento virtual.
 Quer dizer, legião de fãs era, claro, um exagero. Na verdade eram três fãs e Beto Norberto nunca os vira pessoalmente. Também é verdade que todos eles usavam Nicks estranhos, como “Comeu, morreu” e “O terror de Itanhanheim” e “Suja bundas” e nosso herói não sabia quais eram seus nomes verdadeiros.  Mas eles eram seus amigos, os melhores amigos que um homem como ele poderia ter. 
Eles certamente estariam ao seu lado naquele fatídico dia de 1985 em que acontecera o fato terrível que o colocara nessa situação. 
Todo herói havia passado por uma situação traumática que o levara em direção ao seu grande desafio: Batman perdera os pais, o mundo de Superman havia sido destruído e o Homem-aranha fora picado por uma aranha radioativa (ou geneticamente modificada, maldito Sam Raimi!). 
Ele também havia tido seu grande trauma. 
Beto Norberto estava na terceira série e se apaixonara pela menina mais bonita da escola. Era uma garota loira, de cabelos cacheados, com uma pele de pêssego, olhos azuis e uma infinidade de notas máximas no boletim. Ou seja: era a queridinha dos professores e o alvo dos olhares apaixonados de todos os rapazes da escola. 
O garoto imaginava-se como um cavaleiro andante, percorrendo as planícies com seu cavalo branco indo salvar sua princesa do dragão malvado. E foi assim que ele abriu caminho até ela, resoluto e imponente, heroico até... no horário do recreio. 
O garoto colocou-se aos seus pés, de joelhos, pegou-lhe a mão e pronunciou as palavras. Que palavras eram ele não se lembrava, mas deviam ser palavras lindas, de absoluto furor  romântico. 
A garota ouviu atentamente e até sorriu (e, diante daquele sorriso, Beto Norberto temeu que aparecesse um vilão e a sequestrasse, como o Duende Verde fizera com a Gwen Stacy). 
Quando terminou, seus lábios lindos e carnudos pronunciaram uma única frase: 
- Você já se olhou no espelho? 

Beto Norberto crispava os dedos e fazia pequenos grunhidos de ódio quando se lembrava da cena. Por vezes, tinha ímpetos de destruir o teclado e só não o fazia porque era o único que tinha e, se destruísse o computador, não teria como baixar todos os seriados que assistia. 
Ah, os seriados, ah, os filmes... depois dos gibis eram a felicidade de sua existência. Gostava especialmente daqueles inteligentes, como o filme em que quatro zumbis jogavam poker e quem ganhava comia o cérebro dos demais e depois ia para o banheiro vomitar, pois era um grupo de zumbis que sofria de bulimia. 
Mas, enquanto esperava seus filmes e seriados baixarem, ele percorria fóruns e redes sociais atacando com sua metralhadora de palavras. Como um cão perdigueiro, ele procurava sua vítima. Ele sentia prazer em destruir-lhes os castelos: era um mestre nisso. Lembrava-se como um troféu como criticara o texto de um garoto de 12 anos que acabara de publicar um fanfic muito elogiado. Nosso herói, sem nem mesmo ter lido o texto, mostrou que ele na verdade era um analfabeto que mal sabia digitar seu próprio nome. O guri deve ter saído de perto do computador chorando para se consolar com sua mãe! 
Que glória! 
Os amigos o parabenizaram! Com que maestria ele destruíra o texto do garoto, com que destreza ele transformara sua alegria em pura tristeza e choro. Ah, se existissem mais pessoas assim, diziam os amigos, ah se existissem! 
De fato, a argumentação de Beto Norberto era infalível. E, mesmo que não fosse, havia sempre a saída de mestre: bastava dizer que o trabalho do outro era uma merda. Não há argumentos contra isso!
Mas essa vida  de vitórias virtuais começava a incomodar. Beto Norberto achava que era o momento de passar para um ponto mais radical de sua carreira. Não bastava fazer alguém chorar, ou ofendê-la publicamente. Ele achou que só seria plenamente realizado no dia em que matasse um de seus desafetos.  E já havia um escolhido: o escritor José Augusto, um dos maiores sucessos dos últimos tempos. Nosso herói nunca lera um livro dele (Deus me livre, dizia ele, quero continuar com meu cérebro saudável), mas sabia que eram horríveis, especialmente pelo fato de que o escritor jamais se dignara a responder a suas ofensas, prova máxima de que se tratava de um desqualificado. 
Matá-lo seria um serviço à humanidade. 
Mas como? Beto Norberto sabia que teria que levantar a bunda gorda da cadeira e fazer aquilo que qualquer herói da envergadura dele faria: 
- Mãe, me empresta dinheiro? 
A mãe, que assistia à novela da tarde comendo um saco de salgadinhos que pareciam mais gostosos a cada segundo, levantou os olhos, desconfiada: 
- Emprestar dinheiro?! Quanto você quer? 
- É pouco, mãe, só dois mil reais!  
- Pra que você quer dois  mil reais, seu imprestável?
Vamos, pense rápido, todos os grandes heróis têm raciocínio rápido!  
- É que eu preciso... 
Pense, pense homem! Onde está toda a inteligência que arrebata uma legião de fãs? 
- Eu preciso comprar uma Coca-cola! 
A mãe olhou-o, desconfiada. 
- Uma Coca-cola, por dois mil reais? 
- É uma Coca-cola beeem grande... 
A mãe piscou três vezes, ainda desconfiada. 
- Uma Coca-cola por dois mil reais? 
Beto Norberto soltou seu melhor sorriso: 
- É que vem com um brinde! 
Houve um minuto de silêncio, contado no relógio. 
- Está bem. Pegue a minha bolsa. Era o dinheiro que eu estava economizando para comprar uma máquina de lavar nova... 
Uma máquina de lavar! O que era uma máquina de lavar nova diante da glória de ter um filho assassino? Beto Norberto já se imaginava o crime em todos os jornais. E, mesmo que o pegassem, ainda assim valeria a pena. Pensando bem, talvez fosse até melhor que o pegassem, todo grande escritor já tinha sido preso. Ia ser famoso e escrever suas memórias.  Sucesso, aí vou eu! 
Agora restava escolher a arma. Beto Norberto tinha um conhecido que vendia drogas e  armas, e era o seu fornecedor oficial de jujubas.
Ele encomendou um rifle de alta precisão, com mira telescópica, mas tudo que o traficante tinha por dois mil pilas era uma espingarda velha. Tanto faz, pensou nosso herói. Afinal, ele era um exímio atirador em todos os jogos de computador que conhecia. O que importa é o atirador, e não a arma, não é mesmo? 
Basta procurar um local alto, apontar e atirar. Não tem erro. 
Beto Norberto passou a seguir os passos do escritor, o que não foi um trabalho fácil, com seus 120 quilos. Ele descobriu que José Augusto fazia caminhada de manhã e passava sempre pela mesma praça. Ao lado, havia um prédio abandonado, com saída para uma rua lateral. Era o local perfeito para atirar. 
No dia escolhido, nosso herói se postou na sacada de um dos apartamentos, apontou a espingarda e esperou.

Seu coração bateu mais forte quando o escritor veio correndo.  Ao mesmo tempo, um rapaz veio na direção dele, talvez um fã pedindo um autógrafo. Era agora ou nunca. Beto Norberto atirou e saiu correndo. Foi bamboleando pela escada e pela rua. Chegou em casa esbaforido e ligou a TV, esperando a notícia. Quase desmaiou de emoção quando ouviu o plantão do Jornal Nacional. 
A principal notícia era a de que um dos escritores mais famosos do país havia sofrido uma tentativa de assalto. De alguma forma, o assaltante havia sido morto. 
“Não entendi nada”, disse o escritor. “Ele se aproximou com a arma, anunciou o assalto e depois caiu no chão, morto”. 
Segundo a jornalista, a polícia estava investigando a possibilidade do assaltante ter atirado em si mesmo. 
Beto Norberto desligou a TV, indignado. Só não quebrou o aparelho porque certamente a mãe ia brigar. 
Havia errado o tiro! Pior: matara o homem que talvez fosse matar seu desafeto.  Pior ainda: a polícia e a imprensa haviam ignorado completamente o fato de que o escritor sofrera um atentado! 
Era necessário tomar medidas drásticas! 
Beto Norberto procurou mais uma vez o traficante de jujubas e trocou a espingarda por uma bomba.  Dessa vez ia matar não só o escritor, mas uma grande quantidade de seus fãs, pois gente assim não merece viver. 
Já tinha tudo planejado. Na mesma semana o famoso escritor faria uma noite de autógrafos em uma livraria próxima (o fato de ser próxima foi particularmente tentador, já que Beto Norberto não precisaria correr tanto quanto da outra vez). Basta ir lá, instalar a bomba abaixo da mesa onde ficaria o escritor e assistir pela TV o artefato explodindo. Perfeito!
No dia do lançamento ele foi até a loja mais cedo e ficou lá, esperando os funcionários terminarem os preparativos para a noite de autógrafos. Queria ter certeza de colocar a bomba no lugar certo. De vez em quando olhava no casaco e vislumbrava a bomba e o relógio preso a ela. Faltava pouco para se tornar famoso. 
Quando se sentiu seguro, tirou a bomba do bolso e abaixou-se para prender a bomba. Para isso, era necessário ajustar o relógio e retirar o plástico que cobria o adesivo. Quando fez isso, percebeu que a mão ficara presa à bomba. Talvez fosse uma reação à gordura do Doritos, mas o fato é que nem com os maiores esforços ele conseguia desgrudá-la. 
Pior: o relógio travara e a bomba iria explodir em minutos! 
Beto Norberto levantou-se, sacudindo as mãos e saiu correndo na direção da saída, derrubando clientes e estantes no caminho. Os segundos iam tiquetaqueando em sua mão, enquanto ele corria resfolegando pelos corredores do shopping. Finalmente achou o banheiro e enfiou a mão dentro de uma privada. Achou que isso iria parar o processo, mas estava errado. O relógio era à prova de água! Felizmente o líquido da privada ajudou a desgrudar sua mão. 
Beto Norberto saiu do banheiro sem lavar a mão. Já estava longe quando ouviu um estrondo. 
Na mesma noite uma das matérias falava de um gordo que fizera uma brincadeira explodindo um vaso sanitário no banheiro de um shopping. As imagens de segurança o mostravam saindo do banheiro com as calças molhadas. 
Era o cúmulo da humilhação. Além de não ter conseguido o que queria, Beto Norberto ainda havia sido filmado depois de ter urinado na própria calça! 
Só restava a saída honrada do suicídio. Pelo menos isso ele aprendera com os milhares de mangás que baixara pelo Torrent. Mas todos deveriam saber que o  escritor era o culpado. Ele aparecia no jornal doando dinheiro para instituições de caridade, fazendo visitas a asilos e creches. Todos o idolatravam, mas ninguém sabia a víbora que se escondia por trás daquela fantasia de bom moço. 
Beto Norberto escolheu um prédio abandonado em um local movimentado da cidade e subiu o máximo que pôde (enquanto ele subia, pensava em como era fácil arranjar prédios abandonados naquela cidade). 
Foi até a sacada, começou a gritar que ia se matar e esperou os repórteres. Acontece que nesse mesmo dia, no mesmo horário, estava ocorrendo um incêndio em um prédio na outra parte da cidade e todos os jornalistas estavam lá, fazendo a cobertura. 
Uma das redações de jornais chegou a receber uma ligação de alguém avisando sobre a tentativa de suicídio, mas o editor descartou logo: “Nosso único repórter livre está tentando descobrir onde está o babaca que explodiu o banheiro do shopping!”. 
Dessa forma, como não havia imprensa e como o gordo nunca se decidia a pular, a população foi perdendo o interesse. No final, ficou só uma velhinha. Surda. 
- Meu filho, por que você quer pular? 
- Quero mostrar que esse tal de José Augusto é um cretino. 
- Você não precisa pular daí para mostrar que é um cretino, meu filho. – respondeu a velhinha, desviando o olhar do tricô. 
- Não, Eu não disse nada disso, sua velha idiota. – gritou ele. 
- Também não é preciso pular para mostrar que é idiota. – sugeriu a velhinha. 
Era demais! A gota d´água! Beto Norberto sentiu que tinha chegado a hora de matar uma pessoa. Pouco importava que a velhinha fosse uma desconhecida. Alguma publicidade é melhor do que nenhuma...  ele ia descer lá, agarrar o pescoço da velhinha e apertar até que ela largasse aquele maldito tricô.... e depois ia apertar mais. 
Quando se levantou, alguma coisa estranha aconteceu. O parapeito pareceu escorregadio – ou talvez fosse sua mão, suada com o calor. Ele tentou se segurar, mas os pés também escorregavam. Por fim caiu. 
Acordou no quarto de um hospital com sua mãe ao lado, chorando e enxugando as lágrimas com um lenço sujo. 
- Oh, meu filho, fiquei tão preocupada! Que susto... Não, não fale, meu filho. O médico disse que você não deve falar por um bom tempo. Ele disse também que o fato de você ter subido só até o segundo andar ajudou. Além disso, a gordura ajudou a diminuir o impacto da queda. Ah, eu sabia que o mingau de Mucilon que eu te dava quando era criança um dia ainda salvar a sua vida! Fiquei tão feliz que comprei um presente para o meu garoto predileto... 
Disse isso e pegou um pacote de presente. Como o filho estava com os braços quebrados, ela mesma abriu. 
- Enquanto você estava desacordado, falava o tempo todo em um tal de José Augusto. Fiquei tão curiosa  que resolvi pesquisar e descobri que esse José Augusto é um escritor famoso.  Já que você gosta tanto, comprei toda a obra dele e vou ler todos os livros para você...  até o meu menino ficar bom. 
Beto Norberto queria estar morto. Ou matar alguém.

1 comentário:

KA disse...

Bom conto, professor!

Troll de internet e quem dissemina fake news, na vida real é defenestrado pela realidade do mundo