Quando eu participava do movimento anarquista em Belém, nos anos 1990, uma das discussões mais recorrentes era sobre a necessidade de auto-disciplina. Uma sociedade em que todos fossem auto-disciplinados não precisaria de disciplina imposta. O princípio básico dessa ideia era de que não se deve fazer nada que provoque dano ao outro. Se todos agem assim, qual a necessidade de uma autoridade dizendo o que as pessoas devem ou não fazer?
Há aspectos óbvios dessa visão: se o princípio básico é não fazer o mal ao outro, então eu não posso matar o outro. Mas esse princípio se estende a todos os outros aspectos da vida. Eu não jogo lixo na rua, por exemplo, pois sei que isso provoca enchentes que irão prejudicar outras pessoas (e talvez até a mim mesmo). Como Belém tinha pouquíssimas lixeiras, era comum, por exemplo, guardarmos embalagens na mochila até encontrarmos uma lixeira onde pudéssemos descartá-las.
Eu não bebo e dirijo porque sei que fazer isso coloca a vida de outras pessoas em risco. Eu tomo vacina porque sei que assim estou protegendo, além de mim mesmo, pessoas que não podem tomar vacina.
No Japão, uma sociedade em que as pessoas são acostumadas à auto-disciplina, se uma pessoa fica gripada, ela imediatamente coloca máscara para não infectar outras pessoas. Isso é a preocupação de não provocar o mau ao outro. Claro que numa situação de pandemia de uma doença respiratória, isso é ainda mais importante. Afinal, eu posso estar com sintomas leves ou até assintomático, e transmitir a doença para alguém que poderá morrer. É o princípio básico: eu devo evitar ao máximo provocar o mal a outra pessoa.
Mas nos últimos tempos tem surgido um novo tipo de “anarquismo”, totalmente desvinculado dos libertários históricos, que coloca a liberdade individual acima de tudo.
São pessoas, por exemplo, que defendem que o uso de máscara não seja obrigatório – porque elas querem andar sem máscara em plena pandemia. Defendem que vacinação não seja obrigatória – porque elas não querem tomar vacina em plena pandemia. Defendem que não existam limites de velocidade nas ruas e estradas – porque elas querem andar com seus carros à velocidade máxima possível, colocando a vida de outras pessoas em risco. Querem que o uso de cinto de segurança não seja obrigatório – porque querem passear por aí (em velocidade máxima) com todos dentro do carro sem cinto de segurança, incluindo crianças. Querem que não haja a proibição de consumo de bebidas álcoolicas para quem vai dirigir – porque querem beber e dirigir.
Enfim, são pessoas que acreditam que as necessidades e desejos individuais estão acima do bem coletivo.
Um ótimo exemplo dessa visão é a volta do sarampo. A doença estava erradicada no Brasil desde 1992. Como grupos resolveram reinvidicar o direito de não tomar vacina e não vacinar seus filhos, a doença voltou com tudo. E quem está morrendo são crianças, principalmente aquelas que ainda não estão em idade para vacinar. Mas são mortes suportáveis para aqueles que defendem a liberdade acima de tudo.
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