Um dos principais vilões do Demolidor é o Mercenário, mas na
primeira aparição do personagem, tendo Miller como desenhista, ainda na fase do
Roger McKenzie como roteirista, ele simplesmente perde a oportunidade de matar
o herói após um surto providencial.
Miller deve ter percebido que isso era uma ponta solta, um
momento mal explicado na cronologia do personagem e resolveu a situação com uma
história publicada em Daredevil 169.
A história começa com uma sequência magistral, na qual Matt
Murdock está sendo entrevistado num programa de TV quando o apresentador paralisa
a entrevista para dar a notícia de que o Mercenário fugiu da prisão. É dado um
close no jornalista e, no quadro seguinte, a imagem abre e vemos a poltrona de
Murdock vazia. O humor aqui surge do uso inteligente da elipse, recurso no qual
parte dos fatos narrados é omitida.
Miller usava a elipse para criar humor... |
A história pula para uma igualmente genial página dupla na
qual o mercênário está andando na rua e todas as pessoas à sua volta estão
caracterizadas como versões do Demolidor, o que reflete seu delírio. Vale
lembrar que o nome original do herói, Daredevil, inclui a palavra demônio, o
que se reflete no título da história.
Em seu delírio, o vilão entra em um cinema e está passando O
falcão maltez na versão interpretada por Humprhey Bogarth. A situação é uma
oportunidade que Miller usa para homenagear o cinema noir, uma de suas
principais influências. Enquanto o Mercenário briga com várias pessoas no
local, dois fãs tecem comentários sobre o filme: “A interpretação de Bogarth
leva à tela um Sam Spade descrente, mas ainda assim vulnerável... com o certeza
o protótipo do herói detetive”. Embora os dois nerds sejam mostrados de forma
humorística e até certo ponto pejorativa, é inegável que boa parte daquelas
falas parecem ter saído diretamente das opiniões de Miller sobre o cinema noir.
... ou para mostrar a insegurança do personagem. |
Essa história traz ainda duas sequências que mostram a genialidade de Miller no uso da elipse. Ele pode usar o recurso para encurtar o tempo, fazendo com que algo pareça ter acontedido de repente, como no caso da poltrona vazia, mas também pode fazer o tempo se alongar, quase como numa câmera lenta.
Em uma delas, o vilão joga uma faca no ombro do Demolidor. A sequência inteira dura seis quadros. Em outro, um dos nerds resolve usar uma replica do falcão maltês para acertar a cabeça do Mercenário enquanto ele está em uma de suas crises. Essa sequência também dura seis quadros e a extensão do tempo tem o objetivo de mostrar a insegurança do nerd. “Ele está indefeso. Pode ser nossa única chance... esta estátua é pesada. Deve quebrar a cabeça dele. Mas... se não quebrar... o cara vai... vai...”... e o personagem volta a colocar a estátua no lugar. Impossível replicar esse recurso na literatura e até mesmo no cinema ela não teria o mesmo impacto.
Miller estava mostrando como a
linguagem dos quadrinhos tinha recursos únicos.
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