quarta-feira, julho 24, 2024

A guerra dos tronos

 

A literatura de fantasia surge, no século XIX, como uma reação romântica ao racionalismo iluminista. No lugar da ciência e da tecnologia pregados por movimentos como o samsionismo, o romantismo colocava as velhas lendas, bruxos, duendes e gigantes da Idade Média. A opera O anel de Nibelungo, de Richard Wagner, é exemplo disso. Posteriormente, esse novo gênero vai dar origem a todo um novo gênero, com exemplos como O senhor dos anéis, Crônicas de Narnia e Harry Potter.
Entretanto, todas essas obras  sempre tiveram um pé no romantismo dos primeiros tempos. A Guerra dos tronos, de George R.R. Martin mostra que o gênero cresceu e agora já namora com o realismo.
O livro fala sobre um mundo em que as estações podem durar décadas e que existem dragões, zumbis e lobos gigantes. Mas, contracenando com esses seres fantásticos, Martin coloca personagens tão reais que parecem existir de fato. Com óbvia inspiração na Idade Média, mas uma Idade Média real, o livro mostra prostitutas, complôs, bebedeiras, sexo e muita, muita violência.
Os protagonistas são a família Stark, Lorde Eddard, sua esposa Catelyn, seus filhos Robb, Sansa, Arya, Brandon, Rickon e o bastardo Jon. Os capítulos, titulados com os nomes dos personagens, acompanham a maior parte da família em suas desventuras a partir do momento em que Eddard, senhor de um feudo no norte, é convidado pelo soberano e amigo Robert para se tornar a mão do rei, o que joga a todos no meio das intrigas da corte.
Mas há dois personagens que, embora não sejam protagonistas desse primeiro livro, chamam atenção: Danny, um sobrevivente da família real destronada por Robert, que evolui de uma garota tímida e amedrontrada pelo irmão para uma mulher forte (refletindo, provavelmente, o poder que as mulheres ganharam na Europa a partir das Cruzadas) e Tyrion.
Tyrion é um dos melhores vilões da literatura. Fiel ao realismo, Martin escreveu um livro em que até o vilão é um personagem interessante, conflituoso, que, embora rejeitado pela família, faz tudo para mantê-la no poder. Anão, aleijado e feio, Tyrion compensa suas limitações físicas com um intelecto privilegiado e a estratégia de um jogador de xadrez. Mesmo em situações em que o leitor o imagina morto, ele consegue reverter a situação a seu favor. É tão interessante que, a certo ponto, a maioria dos leitores começa a torcer por ele. Não bastasse isso, ele se confraterniza com Jon, do clã Stark, por sentir que ambos são excluídos. Desde já é um vilão que ficará imortalizado na literatura e na cultura pop.
Aliás, Tyrion representa bem algo que poderia ser uma máxima de Guerra dos Tronos: nada é o que parece. Fã de quadrinhos, George Martin parece inspirar-se neles para colocar reviravoltas em cima de reviravoltas na trama, muitas das quais parecem seguir na direção do romantismo, mas logo dão uma guinada rumo à realidade. A primeira transa do duende (como ele é chamado) representa bem esse ponto de vista. Um dia ele e o irmão andavam pela estrada quando viram uma jovem donzela sendo perseguida por malfeitores. O irmão tratou de perseguir os ladrões, enquanto ele socorria a jovem. Foram para a cama e ele se apaixonou tanto os dois se casaram, escondidos do pai. Ao saber, este obrigou o irmão a revelar a verdade: a garota era na verdade uma prostituta e tudo não passara de uma brincadeira para que o anão tivesse sua primeira noite de amor. Como lição, o pai deu a “esposa” aos guardas, cada um dos quais a pagou com uma moeda de prata: “ela tinha tantas peças de prata que as moedas escorregavam entre seus dedos e rolavam para o chão. Lorde Tywin obrigou-me a ser o último. E deu-me uma moeda de ouro para pagá-la, porque era um Lannister, e por isso valia mais”.
Essa guinada é visível também nos capítulos centrados em Sansa. Todos começam com um insuportável tom açucarado, mas logo a realidade se revela. Exemplo disso é o capítulo sobre o torneio, ao final do qual a herdeira do clã Stark descobre que um rapaz morto durante o torneio foi na verdade assassinado.  
Não confie nos seus olhos, parece dizer o autor: o belo e atencioso príncipe pode se revelar um vilão muito mais cruel do que o seu deformado segurança.
Outro mérito de Guerra dos tronos é a questão das descrições. Um dos pontos mais criticados em obras como O Senhor dos Aneis é o excesso de descrições de paisagens, algumas delas insuportáveis. George Martin também as utiliza em grande quantidade, mas prefere descrever ações (quase sempre num estilo cinematográfico): “Gritando, Bran caiu da janela de costas para o vazio. Nada havia a que pudesse se agarrar. O pátio correu ao seu encontro. Em algum lugar, ao longe, um lobo uivava. Corvos voavam em círculos sobre a torre quebrada, esperando milho”.
Em outras ocasiões, as descrições são usadas para caracterizar os personagens: “Os olhos dele abriram-se de repente e olharam-na, e neles nada havia além da repugnância, nada além do mais vil desprezo. – Então vai – ele cuspiu. – E não me toque”.
Não por acaso, Guerra dos tronos deu origem a um seriado de sucesso pela HBO: o livro é um ótimo roteiro, já decupado.
Em tempo, vale lembrar que a iniciativa de George Martin de trazer o realismo para a literatura de fantasia já havia sido usada por Robert Edward nas histórias de Conan, que praticamente definiram o gênero espada e magia, mas as limitações dos pulps onde este publicava suas histórias o impedia que avançar em todos os sentidos. Sem esses limites, Guerra dos tronos eleva esse gênero a um novo patamar.

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