Co-criador tanto do Homem-aranha quanto do Dr. Estranho, Steve Ditko é uma das figuras mais importantes dos quadrinhos de super-heróis. É também uma das mais misteriosas a ponto de existirem pouquíssimas fotos dele.
É essa figura reclusa e cotroversa que Roberto Guedes pretende revelar na biografia O incrível Steve Ditko publicada em 2019 pela Noir.
Guedes acompanha o desenhista desde a infância, quando ele brincava de Batman com a fantasia costurada pela mãe. Seu sonho era ser desenhista de quadrinhos. Ele acabou conseguindo um emprego na agência de Jack Kirby e Joe Simon e começou a fazer um curso com Jerry Robinson, que costumava levar roteiristas, desenhistas e editores para conversar com os alunos. Um dia receberam a visita de um homem sorridente, responsável pelos quadrinhos da editora Atlas. Era stan Lee, que se tornaria seu grande parceiro na criação do Homem-aranha e do Dr. Estranho.
Anos depois, procurou Stan Lee e começou a trabalhar para a Atlas ao mesmo tempo que colaborava com a Charlton, que pagava pouco, mas dava total liberdade criativa. “Steve tinha ética e crenças rígidas, e nunca as abandonava. Ele jamais faria um trabalho ruim só porque estava sendo mal remunerado”, explanou o roteirista Joe Gill, em depoimento no livro.
Stan Lee percebeu que, ao contrário de Jack Kirby, famoso por sua imaginação cósmica, Ditko se saía melhor retratando o homem comum as situações ordinárias da vida. Um dos exemplos dessa capacidade é a história “No mundo dos sonhos”, que se passava todo dentro de um quarto, onde um angustiado protagonista não sabia se estava acordado ou dormindo.
O projeto gráfico torna o livro ainda mais interessante. |
Nessa época o desenhista já usava uma técnica herdada de Mort Meskin, que conhecera no estúdio de Kirby e Simon: as cenas surreais, com cabeças e bocas enormes flutuantes, algo que seria uma de suas características mais marcantes nas histórias do Homem-aranha e do Dr. Estranho.
Embora toda essa parte inicial seja importante para entender a formação do artista, a maioria dos leitores irá se interessar de fato pelo ponto em que Guedes começa a narrar a criação do Homem-aranha, um dos heróis mais populares de todos os tempos.
Segundo o autor, Stan Lee tivera a ideia para o herói ao ver uma aranha dependurarada na teia, no seu escritório. Jack Kirby foi chamado e produziu cinco páginas do novo herói. Steve Ditko seria responsável pela arte-final, mas quando pegou as páginas, viu que aquilo não funcionava.
A história apresentava um adolescente dono um anel mágico que o transformava num herói adulto. O rapaz usava uma arma e morava com os tios (ou seja, já naquela primeira versão ele era um órfão). O tio era um policial.
Ao ver aquelas páginas, Ditko percebeu que o enredo era praticamente o mesmo de O Mosca, personagem criado por Kirby e Joe Simon e publicado pela Archie Comics. “Stan Lee ficou abismado ao ouvir aquilo. Nunca tinha ouvido falar do personagem de Simon. Desabafou com Ditko que também não estava satisfeito com o modo como Kirby havia retratado o Homem-aranha. Mostrava-se heroico e imponente demais, feito o Capitão América. O editor queria que o novo personagem fosse franzino, que permanecesse com sua aparência de adolescente, mesmo após ganhar os poderes aracnídeos”, escreve Roberto Guedes.
A solução foi pedir para Ditko refazer as páginas.
Ditko transformou o herói praticamente num auto-retrato: franzino, de óculos, magro, com o mesmo corte de cabelo. Também mostrou, desde a primeira página, o personagem como um pária (uma das melhores partes do livro é justamente quando o autor analisa como a primeira página da primeira história expressava perfeitamente o sentimento de solidão e exclusão de Peter Parker).
Anos mais tarde, Jack Kirby argumentou que ele tinha criado o Homem-aranha, incluindo seu visual. As cinco páginas não existiam mais, mas Ditko veio a público e publicou um desenho mostrando as diferenças da versão de Kirby para a sua versão. De fato, a se acreditar nesse desenho, reproduzido no livro de Guedes, o Homem-aranha de Kirby estava muito mais próximo do Capitão América, inclusive com botas.
O livro também conta os bastidores da criação do Dr. Estranho, o herói predileto dos hippies, para ojeriza de Ditko. Quando alguém da redação da Marvel informou a ele que os jovens usavam alucionógenos para apreciar as histórias do personagem, o desenhista ficou horrorizado.
Mas, se por um lado, o traço e a narrativa do Ditko evoluíam a cada história e os heróis co-criados por ele fossem cada vez mais populares, um outro fato acontecia que iria mudar tudo: o mergulho do autor na doutrina do objetivismo.
Isso colocaria Ditko e Lee em rota de colisão. Enquanto Ditko queria um herói bem-sucedido, individualista e implacável com os criminosos, Stan Lee preferia um herói altruísta, cheio de remorsos e qua abria mão da própria felicidade para ajudar o próximo.
Chegou num ponto que a diferença entre os dois era tão grande que nem se falavam mais. Ditko ia na redação, entregava as páginas e Stan Lee colocava o texto. Mesmo assim, a qualidade das histórias evoluía a cada número, até desembocar no clássico absoluto, a trilogia iniciada em Amazing Spider-man 31, no qual Peter Parker ia atrás de um soro para salvar a Tia May e ficava preso debaixo de toneladas de ferro num subterrâneo que se enche de água. Enquanto ditko fazia uma sequencia magistral, incluindo as já famosas cabeças flutuantes, Stan Lee trabalhava no texto as motivações do herói.
Mas enquanto os fãs elegiam aquela a melhor história do aranha de todos os tempos, Ditko percebia que havia participado de um tributo ao coletivo. Logo ele, um individualista. Esse sentimento, somado a várias insatisfações contra a Marvel (Ditko considerava que a editora estava ganhando muito dinheiro às suas custas e ele não estava recebendo retorno) fez com que ele abandonasse a editora no que parecia o auge do sucesso do Homem-aranha.
Na Charlton ele participou da criação ou revitalização de personagens importantes, como o Capitão Átomo, o Besouro Azul e O Questão (curiosamente, todos eles tiveram sua contraparte em Watchmen).
Insatisfeito com as limitações editoriais, ele criou um vigilante do crime ainda mais radical que o Questão, chamado de Mr. A. O “A” vinha da expressão “A é A”, de Parmênides, o filósofo que acreditava que o mundo não passava por nenhum tipo de mudança (ao contrário de Heráclito, que acreditava que a essência da realidade era a mudança). “Em geral, as histórias terminavam simbolicamente, com o criminoso dependurado em um abismo pedindo clemência e justificando que enveredou pelo crime por culpa da sociedade que o fez assim. Mr. A o ignorava, deixando-o despencar para a morte”, escreve Guedes.
Ditko começou também a colaborar com fanzines e publicações alternativas.
Mas logo sua postura intransigente iria transformá-lo em um grande problema para editores e fanzineiros. Até mesmo amigos, como Dick Giordano, temiam contratá-lo por conta de sua postura que nunca parecia se agradar de nada. Ao mesmo tempo, seu estilo parecia se tornar cada vez mais defasado, agradando muito pouco as novas gerações.
Ditko também desperdiçava chances. Quando Frank Miller estourou com Cavaleiro das Trevas, resolveu procurar seu ídolo com a proposta de fazerem algo em conjunto. Seguiria qualquer condição imposta. O co-criador do Homem-aranha simplesmente desdenhou do convite. Além disso, recusava entrevistas e fugia até de fotos.
Um final melancólico para um dos artistas mais importantes dos quadrinhos.
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