segunda-feira, outubro 22, 2007


Quem me conhece melhor, sabe que sou fã de Roberto Carlos, mas sabe também que fiquei muito decepcionado quando ele resolveu censurar o livro Roberto Carlos em detalhes. Fiquei mais decepcionado ao ler este texto, do autor do livro, no qual ele explica os verdadeiros motivos do rei (grifos meus):


ROBERTO CARLOS PRECISA DE UM TONY BLAIR
Por Paulo Cesar de Araújo


No inicio dos anos 70, Roberto Carlos gravou um de seus grandes sucessos, "Eu quero apenas", mais conhecida como "Um milhão de amigos", que em um dos versos diz: "Eu quero crer na paz do futuro/ eu quero ter um quintal sem muro". Decorridas mais de três décadas do lançamento desta música podemos dizer que este futuro já chegou. Portanto, já é possível constatar que, infelizmente, aquele ideário do artista não foi alcançado: a paz não vigora em nosso mundo como também não vivemos em quintais sem muros. Ao contrário, ao longo desses anos acentuaram-se muros e cercas em torno de propriedades privadas, até mesmo em prédios residenciais nas grandes cidades. Mas o mais irônico é que coube a Roberto Carlos reivindicar a forma mais radical que se conhece de propriedade privada; não apenas aquela sobre os meios de produção, um imóvel ou um automóvel, mas a propriedade privada de sua história - e em torno da qual ele tenta erguer um muro para protegê-la da "invasão" alheia.
Durante recente entrevista coletiva no navio Costa Furtuna, o cantor foi mais uma vez enfático ao reclamar do livro "Roberto Carlos em Detalhes". "A minha história é um patrimônio meu, quem escreveu este livro se apropriou deste meu patrimônio e usou este patrimônio em seu próprio beneficio". Em outra coletiva, no fim do ano passado, um jornalista ponderou que a sua produção musical é redimensionada no livro. "E daí?", rebateu o artista. "Você gostaria que alguém escrevesse a sua história, quando você quer escrever a sua própria história? Me responde! Você gostaria?".
Creio que este é o principal motivo que levou Roberto Carlos a abrir um processo contra mim e a Editora Planeta. Supostas ofensas à honra ou invasão de privacidade são apenas pretextos para pedir e, por enquanto, conseguir na Justiça a proibição do livro. No próprio texto do processo cível o advogado do cantor reclama por seu cliente não estar obtendo "qualquer participação nos lucros provenientes da vendagem do livro". Reclama também da perda de "lucros futuros" pelo fato de a obra tirar o ineditismo da biografia que um dia o cantor pretende escrever. Por isso, Roberto Carlos não quer simplesmente corrigir esta ou aquela passagem que considere ofensiva ou equivocada no livro; o que ele quer é proibir que alguém escreva sobre sua história - o que, além da tentativa de reivindicar reserva de mercado, é uma flagrante ameaça à liberdade de expressão.
Imagine que alguém como o presidente Lula também reivindicasse que a sua história é patrimônio exclusivo seu, e que caberia a ele escrevê-la como e quando quisesse. Nenhum historiador poderia contar a história de um dos oito filhos de dona Eurídice, o retirante nordestino que se tornou líder metalúrgico e, mais tarde, presidente da República. Pois para Roberto Carlos é um usurpador da história alheia quem escreveu a sua trajetória de menino pobre, que também saiu do interior do Brasil e, contra todas as adversidades, se consagrou como o "rei" da nossa música popular. Segundo esta lógica, são usurpadores da história alheia biógrafos como Peter Gay, que escreveu a biografia não-autorizada de Sigmund Freud; Howard Sounes que escreveu a biografia não-autorizada de Bob Dylan; Wendy Goldman Rohm que escreveu a biografia não-autorizada de Bill Gates; Michael Braun, que escreveu a biografia não-autorizada dos Beatles. E todos deveriam ser processados por roubar o que não lhes pertencia. Porém, para todos esses casos prevaleceu a idéia de que escreveram sobre figuras públicas cujas histórias pertencem à coletividade e são, portanto, de interesse geral.
A rigor, uma história de vida não existe isoladamente, mas em relação com outras histórias. E se valer para cada um o direito privado sobre sua história, ninguém poderá escrever uma autobiografia sem pedir permissão a outros. Para Roberto Carlos narrar sua história (entendida como patrimônio particular) teria que pedir permissão aos herdeiros de Carlos Imperial, no momento em que sua história cruzar com a dele; ou aos herdeiros de Tim Maia, pela mesma razão. Sim, porque a partir do momento em que saiu para o mundo, interagiu com outras pessoas, com as quais trabalhou, criou, brigou, amou, a história de Roberto Carlos faz parte de uma história coletiva. E no caso específico dele não dá nem para separar história púbica de história privada porque ambas estão entrelaçadas em sua obra musical. Ele é um artista autobiográfico, pois canta o que vive e o que sente. Como analisar, por exemplo, uma canção como "Lady Laura" sem falar da relação do artista com sua mãe (vida privada); ou uma canção como "Amigo", sem falar de sua amizade com Erasmo Carlos (também vida privada); ou as muitas canções de amor que ele também ofereceu publicamente para as esposas Nice, Myrian Rios e Maria Rita?
O contraditório é que ao entrar na Justiça para defender a "posse" de sua história, o artista relegou a segundo plano outro importante patrimônio: a sua imagem pública. Ao longo da carreira, Roberto Carlos se esforçou para construir sua imagem com bastante esmero, evitando, sempre que possível, se envolver em polêmicas musicais, políticas ou religiosas. Entretanto, a boa fama e respeitabilidade que adquiriu vêm sofrendo sério abalo justamente por sua decisão de pedir a proibição de um livro que, na opinião unânime de críticos e fãs, engrandece a sua vida e a sua arte. Nas últimas semanas, editoriais de jornais, artigos em revistas, blogs, enfim, grande parte dos formadores de opinião tem direcionado duras críticas ao cantor. O escritor Ruy Castro, por exemplo, afirmou que com sua atitude Roberto Carlos "se revelou um ser humano menor". O colunista Nirlando Beirão também escreveu que "com o gesto judicial grosseiro e rude, o que o rei fez foi de fato rasgar a sua biografia". E em editorial titulado "Quando a censura triunfa", o Jornal do Brasil enfatizou que "disso o rei não precisava".
Observadas as distintas naturezas das "monarquias", recorde-se que a rainha da Inglaterra passou por momento semelhante em setembro de 1997, logo após a morte da princesa Diana - que a família real considerava excluída de suas hostes. Como ilustra o filme "A Rainha", de Stephen Frears, a hesitação de Elizabeth II em fazer um pronunciamento público pela morte da princesa fez dela alvo de severas críticas da imprensa. Foi então que o primeiro-ministro Tony Blair ligou para a rainha, leu para ela o que diziam os jornais, mostrou-lhe o quanto a monarquia estava na contramão da opinião pública, e acabou convencendo-a do grave erro que cometia. Era a modernidade alertando a tradição. Neste momento talvez falte ao rei Roberto Carlos um Tony Blair, alguém com acesso direto a ele, de visão abrangente e moderna, que pudesse convencê-lo de que os tempos são outros, que a sociedade não tolera mais este tipo de censura.
(Gazeta Mercantil/Fim de Semana - Pág. 5)(Paulo César de Araújo - Historiador e jornalista, autor de "Eu Não Cachorro Não" e "Roberto Carlos em Detalhes")

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