A
Mulher Maravilha é uma das personagens mais importantes do universo dos
super-heróis. Junto com Batman e Super-homem, ela forma a tríade da DC Comics. Entretanto,
enquanto vários outros personagens têm suas origens bem definidas e conhecidas,
a Mulher Maravilha é um incógnita mesmo para fãs de quadrinhos. Poucos, por
exemplo, sabem de sua ligação com o movimento feminista, com o detector de
mentiras e com o bondage. Quase ninguém do meio sabe que seu criador era um
psicólogo, criado de uma categorização psicológica atualmente redescoberta e de
uso corrente em diversas áreas.
É
com objetivo de clarear algumas dessas questões que Jill Lepore escreveu A história
secreta da mulher maravilha, lançada este ano pela editora Best Seller.
Um
dos grandes méritos do livro é conectar as histórias da fase de ouro da
personagem com a história de vida de seu criador, com diversos exemplos tirados
dos quadrinhos.
William
Moulton Marston colocou tudo em sua personagem: o feminismo com o qual ele e
suas esposas estavam envolvidos, seus desafetos (um professor serviu de modelo
para um vilão) e até problemas de seus filhos, que eram resolvidos nas páginas
dos gibis.
No
início do século XX a situação da mulher era tal que um juiz declarara, em
sentença, que uma mulher que não estivesse disposta a morrer de parto não
deveria praticar sexo. O movimento feminista se destacou na luta pelo controle
de natalidade. Mulheres chegavam a ser presas apenas por ensinarem outras
mulheres métodos contraceptivos.
Nesse
contexto, intimamente ligado a esse movimento, se estabelece o psicólogo William
Moulton Marston, criador do detector de mentiras e autor do livro As emoções
das pessoas normais, o primeiro a defender o homossexualismo como algo normal (“As
pessoas têm que aprender que os componentes amorosos que existem dentro de si,
que elas passaram a ver como anormais, são totalmente normais”).
Marston
tinha uma família incomum: além de seu casamento convencional, tinha duas
outras esposas. Uma delas era filha da primeira mulher a ser presa por defender
o controle de natalidade. Nesse arranjo familiar incomum havia mais um
elemento: o bondage, técnica sexual de imobilização com cordas ou correntes. Embora
a autora afirme Marston não praticava bondage (um dos filhos, entrevistado por
ela, disse que nunca viu nada disso em casa), é difícil acreditar que alguém tão
apaixonado por tema ficasse apenas na teoria.
Além
de psicólogo, Marston era também roteirista de cinema, tendo escrito diversos
roteiros na época dos filmes mudos.
Apesar
de suas qualificações e seu constante esforço de marketing pessoal, em
determinado ponto ele não conseguia trabalho como professor (as cartas de
recomendação, obrigatórias para conseguir emprego, eram identificadas com o
mesmo código que se usava para homossexuais, provavelmente em razão de seu
arranjo famíliar e preferências sexuais).
Quando,
após um artigo escrito por sua esposa Olive para uma revista com sua opinião
sobre os quadrinhos (ela escrevia como se fosse uma pessoa desconhecida que ia
até ele tomar conselhos), ele foi convidado a participar do conselho editorial
da DC e propôs a criação de uma personagem feminina, em oposição à grande
quantidade de heróis masculinos da época. Mais que uma personagem feminina,
seria uma personagem feminista.
A
Mulher Maravilha foi uma junção de tudo. Seus braceletes era os braceletes
usados por Olive (a esposa que escrevera o artigo), sua arma era uma corda e
ela enfrentava vilões machistas que vociferavam contra o poder feminino e a
participação cada vez maior da mulher na sociedade (em especial no período da
II Guerra, em que as mulheres foram chamadas para ocupar os postos de trabalho,
em substituição aos homens que haviam ido para a guerra) e havia sempre
mulheres e mais mulheres amarradas ou acorrentadas.
A
autora Jill Lepore investiga e esclarece todo o imaginário feminista que deu
base para a personagem. Em uma história em que a Mulher Maravilha enfrenta o
cartel do leite (um plano nazista para esfomear as crianças da américa), a heroína
lidera uma passeata montada em um cavalo, da mesma forma que uma líder feminista
havia feito em uma manifestação pelo sufrágio, em 1913.
A
revista da personagem estava tão alinhada ao movimento feminista que havia uma
sessão chamada “Mulheres maravilhas da história”, com histórias reais de
mulheres que conseguiram grandes feitos e serviriam de exemplo para as
leitoras.
A
personagem chegou até mesmo a ser eleita presidente dos EUA (em uma história
que se passava em um futuro distante).
Tudo
mudou quando Marston morreu, em 1947.
A
diretoria da DC colocou em seu lugar um roteirista manifestadamente machista,
que odiava a personagem, Robert Kanigher. Quando tomou completamente as rédeas
da heroína, encomendou ao novo desenhista uma capa em que a Mulher Maravilha,
sorridente, tolinha, é carregada indefesa por Steve Trevor, que a ajuda a
atravessar um riacho. A personagem forte, que se tornara presidente dos EUA, agora
era uma mulher indefesa e precisava desesperadamente de um marido. A sessão
sobre Mulheres Maravilhas da história se transformou em uma coluna sobre
casamento. Na década de 1960, tiraram-lhe os poderes e o uniforme,
descaracterizando completamente a personagem.
Mesmo
na década de 1970, em que a heroína foi redescoberta pelo movimento feminista,
a DC voltou a colocar como roteirista e editor Kanigher, que marcou o fato
matando, em uma história, a primeira editora da personagem, que na época era
favorável à volta da personagem às suas origens.
O livro de Lepore tem méritos inegáveis. O principal
é a interligação contínua entre as histórias da personagem e a vida de seu
criador. Um aspecto negativo provavelmente é o destaque excessivo à abordagem
feminista, deixando outros aspectos sem maior destaque – entre eles os
bastidores dos quadrinhos da era de ouro (ela nem mesmo cita a relação entre
Marston e outros criadores de quadrinhos da época). Também a questão do bondage
é abordada por cima, e apenas por seu reflexo nas histórias. Ainda assim, é um
livro importante para entender essa que é uma das personagens mais importantes
dos quadrinhos mundiais.
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