Mano Juan é um lançamento da Global, editora que está
publicando as obras completas de Marcos Rey. O livro, escrito na década de 1970 e lançado após a morte do autor, conta a
história de um guerrilheiro ferido que chega a são Paulo e, sem ter a quem
recorrer, procura um jornalista que escrevera diversos artigos sobre ele. Mas é
a época da ditadura militar e o repórter teme se comprometer. Além disso,
Dalila, uma atriz de pornochanchadas pela qual se apaixonara, lhe prometera
para aquele dia uma noite de amor em troca da publicação de suas fotos no
jornal.
Marcos rey um dos grandes roteiristas de cinema do Brasil,
tendo escrito diversas pornochanchadas e novelas (experiência que ele conta nos
livros O roteirista profissional: televisão e cinema e Esta noite ou nunca).
Esse olhar cinematográfico permeia a maior parte de sua obra, inclusive a
juvenil, como O mistério do cinco estrelas e O rapto do garoto de ouro, mas é
ainda mais visível em Mano Juan. O capítulo de abertura do livro é uma boa
amostra desse tino visual: construído em takes, mostra a chegada de um
guerrilheiro a São Paulo e a balbúrdia da rodoviária num feriado prolongado:
“Como era sexta-feira
da Paixão parte da população da cidade batia asas. São Paulo, parcialmente
deserta, transformava-se numa amplo parque ideal ao adestramento de motoristas
de carta nova. (...) O número de
mulheres e crianças, superior ao de homens, contribuía para intensificar a
irritante sonorização do ambiente, apenas dominada pela voz de uma locutora que
anunciava a partida dos ônibus numa robotizada emissão vocal (...) O tumulto
maior e mais angustiante concentrava-se nas escadas, a de degraus e a rolante,
onde acontecia um massacre de proporções razoáveis. Inúmeros balcões e guichês
de transportadoras informavam por escrito: “Não há mais passagens” (...) Uma
mulher grávida, segurando uma criança em cada mão, parecia ter perdido o marido
e chorava, um grupo de cabeludos ameaçava destruir um dos balcões de passagens,
um estrangeirão, loiro, tentava fazer-se entender”.
A história toda parece ter sido escrita como um roteiro de
cinema, inclusive com flash backs e e referências diretas a filmes em trechos
como: “Batista diante daquela bem-rodada cena do cinema nacional, ficou
cabreiro e começou a lançar olhares de pesquisa ao redor”, “os seios, que só vira
em filmes pornôs, saltaram como molas, pagando na boca do caixa o trabalho das
fotografias”.
Marcos Rey constrói a trama como um triller de humor com
personagens marcantes: o guerrilheiro saudoso da infância, o jornalista que o
tempo todo divide o pensamento entre o medo de ser preso e a possibilidade de
conseguir, finalmente, levar a atriz para a cama; a atriz de pornochanchadas
que se deslumbra com a possibilidade de fama, mas se apaixona pelo
guerrilheiro; o líder sindical que é respeitado pelos trabalhadores, mas em
casa é tiranizado pela mulher... O autor apresenta uma verdadeira fauna de
tipos que vão desfilando diante do leitor num verdadeiro plano sequência que
vai das 19:10 da sexta às 4:05 da
madrugada de sábado.
O livro tem gosto da década de 1970 em que a tensão
provocada pela ditadura militar se misturava à revolução sexual, à moda hippie
de vestir e à profusão de gírias. Expressões como “cana brava”, “manjo seu
truque, malandro”, “a velha teve outro balacobaco” ajudam a dar o clima do momento
histórico.
Mano Juan foi escrito em 1978, mas permaneceu inédito até
2005. Em 2003, quando a Global negociou com a viúva Palma Donato a publicação
de toda a obra de Rey, ficou acertado que, além dos títulos já publicados, a
editora teria prioridade sobre esse inédito. Cumprindo o acordo, a viúva
entregou à editora os originais datilografados.
A Global fez um verdadeiro trabalho de fã, com uma edição
belíssima, que segue o padrão das outras obras da coleção Marcos Rey, uma
sugestiva capa Victor Burton, com imagens que simbolizam bem a trama, como uma
loira, um revólver, uma garrafa de wiski e um boton de Che Guevara. Além disso,
incluiu uma apresentação de Ignácio de Loyola Brandão, que acertadamente
escreve: “Ele (Marcos Rey) foi um homem desprezado pela crítica, mas lentamente
começa a ser reavaliado, revisado e sua obra reciclada. Era um narrador sutil e
fino, e a prova está em cada página deste livro que inclusive é permeado pela
mais intensa ironia, pelo sarcasmo. Quem nunca leu Marcos Rey pode começar por
este Mano Juan”. Bom conselho.
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