Monteiro
Lobato foi a última inteligência enciclopédica que tivemos no Brasil. Escrevia
sobre tudo: de geologia à medicina, passando por política e economia. Inquieto,
ele parecia ter uma opinião a expressar sobre qualquer assunto do momento. Além
disso, tinha uma incrível capacidade de conseguir fazer com que qualquer
assunto se tornasse simples de ser compreendido. Esse lado didático e polêmico
que os fãs do autor poderão encontrar no livro Fragmentos, opiniões e
miscelânea, lançado pela editora Globo.
O
livro é resultado de uma reorganização da obra de Lobato. Antes Fragmentos e
Miscelânea integravam o volume Mundo da Lua. Opiniões fazia parte do volume
Mister Slang e o Brasil. O objetivo de Lobato, ao organizar suas obras
completas, era uniformizar o tamanho dos volumes. Mas, segundo a editora, isso
criava um anacronismo, ao enfeixar textos de assuntos diferentes.
A nova
obra é dividida em três partes. Fragmentos é composto de textos curtos, uma
tentativa, abandonada por Lobato, de manter um diário pessoal. Essa parte apresenta
textos curtos, nas quais Lobato expressa sua opinião sobre os mais diversos
assuntos. No item colonialismo, por exemplo, ele escreve: “Somos um povo de
mentalidade colonial. Nascemos colônia e até agora só conquistamos a independência
política. Econômica, espiritual, mental e cientificamente, continuamos colônia.
Damo-nos pressa em adotar tudo quanto vem de várias metrópoles que nos seguram
pelo barbicacho – Paris, Berlim, Nova York, Londres”.
Já a
parte Opiniões é uma coletânea de artigos datados de 1926, a maioria criticando
os desmandos do governo Arthur Bernardes. Nesse capítulo se destaca o texto O
padrão, no qual o autor explica aos leitores do que se trata a estabilização da
moeda, objetivo do governo Washington Luiz. Lobato começa criticando os
articulistas de jornal, que, ao invés de esclarecerem o tema, o tornam ainda
mais obscuro: “Mais discutem, mais debatem, e menos o público se esclarece. Por
quê? Porque em regra os expositores também não possuem ideias claras. Baralham
coisas embaralháveis e dão valores arbitrários às cartas. O coringa vale tudo
para um; para outro só vale o dez. Não definem os termos e discutem. Daí o
caos”. Para tentar explicar o assunto, Lobato se socorre com um filósofo
imaginário. Em sua ironia, o autor diz que ele é hóspede do Estado, num
medíocre hotel de pedra com grades de ferro nas portas.
Também
se destacam nesse capítulo a denúncia da forma subserviente como a imprensa
comprada trata o governo, além de sua campanha contra o imposto sobre papel –
na época, o livro importado não pagava imposto, mas o papel pagava taxas
exorbitantes, inviabilizando a indústria livreira nacional.
Mas a
melhor parte é mesmo Miscelânea. Nela, Lobato escreve, ora com emoção, ora com
ironia, sobre os mais diversos assuntos, em textos maiores e mais profundos.
Em
Alice in Wonderland, Lobato transforma uma simples notícia sobre a venda do
manuscrito do famoso livro infantil numa narrativa de suspense e, dá, ao mesmo
tempo um tom intimista ao texto ao focar a narrativa em Missis Hargreaves, a
velhinha, que quando moça inspirara Lewis Carrol.
Em
traduções, Lobato fala sobre o pouco remunerado e desvalorizado trabalho de
tradutor e defende seu ponto de vista, de que o tradutor deve ser também um
escritor, que deve fazer, na verdade, uma adaptação: “Se a tradução é literal,
o sentido chega a desaparecer; a obra torna-se ininteligível e asmática, sem pé
nem cabeça (...) A tradução tem que ser um transplante. O tradutor necessita
compreender a fundo a obra e o autor, e reescrevê-la em português como quem
ouve uma história e depois a conta com palavras suas”. Esse ponto de vista
influenciou toda uma geração de tradutores e até hoje tem gerado polêmica. Em
alguns casos, as traduções de Lobato eram tão pessoais que chegavam a mudar
completamente o estilo do autor original.
Mas o
relato mais pungente é Pearl Harbor, escrito no dia 7 de setembro de 1941,
assim que Lobato soube do ataque japonês. Assustado com as vitórias do nazismo
e seus aliados, Lobato escreve: “Os Estados Unidos são tudo quanto nos resta; e
vê-los agora ameaçados pelo turbilhão das forças loucas da demência totalitária
me deu calafrios no plexo”.
O
leitor, acostumado à prosa leve e irônica de Lobato, certamente se espantará
com o tom triste e desesperado: “Dá nojo o Homo. Mas há entre eles elementos
dignos. O inglês salva-se. Salva-se o americano. Mas na luta de traições que
Hitler desencadeou, as vitórias cabem sempre ao mais sem escrúpulos, ao mais
torpe”.
Ainda
em luto pela morte de um filho e com outro filho doente, Lobato desespera-se. A
tragédia pessoal confunde-se com a tragédia histórica: “Durmo. Sonho. Acordo.
Procuro lembrar-me do sonho, mas só consigo farrapos. Desisto – e gosto tanto
de conhecer meus sonhos – e os dos outros... Madrugada. Passa o leiteiro e
deixa o litro diário. Quatro horas, portanto. É o seu horário. ‘Que saúde!’,
digo a Purezinha acordada. ‘Que diferença do nosso Edgard...’”. No fundo, Lobato
prefere o filho morto a vê-lo sob o jugo nazista e suas câmaras de gás: “só a
morte nos libertará da brutalidade alemã”.
Só
esse texto já vale por todo o volume.
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