Quando entrevistava o mestre Cláudio Seto para meu livro
Grafipar, a editora que saiu do eixo, comentei com ele que Minas é o local do
Brasil mais parecido com o Japão em termos de cultura – ao que ele concordou.
No Japão há uma espécie de dívida de gentileza. Se alguém nos
faz um favor, ficamos em dívida com essa pessoa e devemos em outro momento, retribuir
esse favor. Sônia Luyten me contava que quando foi fazer doutorado no Japão
certa vez recebeu uma encomenda que era para a vizinha e entregou assim que ela
chegou. No dia seguinte, a vizinha bateu-lhe na porta com um presente em
retribuição à gentileza de ter recebido a encomenda.
Eu cansei de ver isso na minha infância e vejo isso quando
visitos meus parentes mineiros. É uma gentileza tão grande que às vezes chega a
ser constrangedora. Você não
sai sem tomar um cafezinho - e esse cafezinho logo se transforma num verdadeiro
banquete de quitandas.
Seto conta que comprava dinheiro com o dinheiro dos ovos. Ele
sempre acompanhava sua avó à granja do tio para comprar ovos. Chegavam lá eram
tratados da melhor forma possível e, ao final, quano a avó queria pagar, o tio
não aceitava. Paga, não paga, paga não paga, a velhinha deixava o dinheiro em
algum lugar. Quando o tio descobria, corria atrás deles para devolver o
dinheiro. Como a avó se recusava a receber, as notas acabava parando nas mãos
do Seto, que usava para comprar gibis.
Mas isso, claro, tem o outro lado, tanto em Minas quanto no
Japão: a pessoa só aceita uma favor, uma gentileza de alguém na qual ela
confia. Afinal, ela não vai querer ficar devendo um favor para alguém que não é
confiável. Por essa razão que recusar uma gentileza é tão ofensivo: significa
que a pessoa considera que o outro não é confiável e, portanto, não quer ficar
em dívida com ele.
Durante anos, embora tenhamos saído de Minas, a guardiã das
tradições mineiras era minha avó. Enquanto morei com ela, nunca perdi o “uai” e
sempre comia angu em todas as refeições.
Minha avó foi uma das pessoas mais admiráveis que já conheci.
Estudou apenas até a quarta-série, mas escrevia melhor que vários estudantes
universitários. Quando eu trabalhava em jornal e trazia os exemplares para casa,
ela devorava da primeira à última página. Foi a única pessoa que conheci que
leu a Bíblia de cabo a rabo mais de uma vez. Hoje em dia, a pessoa lê um versículo
e já sai dizendo que leu a Bíblia.
E foi com ela que aprendi mais uma parte da cultura mineira
que lembra muito o modo japonês de ser: a honra.
Ela sempre me dizia:
- Meu filho, pobre não tem nada, só tem a própria honra.
Exemplo disso aconteceu quando ela aceitou fazer, de graça,
um vestido para uma vizinha.
Minha avó era costureira prendada, do tipo de costurava para
esposa do prefeito, vereador e cobrava bem, mas para a vizinha, que era amiga, se
recusou a cobrar (mais uma vez a história da gentileza mineira – imagina se ela
ia cobrar de uma amiga!).
Quando recebeu o vestido, a vizinha reclamou:
- E a minha tesoura?
- Como assim, que tesoura?
- Quando levei o vestido, levei também uma tesoura nova. Cadê
a tesoura?
Minha avó insistiu que não tinha visto tesoura nenhuma e nem
precisava, pois tinha tesoura em casa. E a outra instindo:
- Cadê a tesoura?
Resumo da ópera: minha avó foi até a loja, comprou uma
tesoura nova e levou para a vizinha, ainda na embalagem. Preferiu ficar no
prejuízo a ser chamada de ladra.
No dia seguinte a vizinha achou a tal tesoura e veio devolver a que
recebera. Minha avó recusou. Deixou a vizinha com as duas tesouras. Mas também
nunca mais falou com ela. Ela não poderia ser amiga de alguém que desconfiava de
sua honestidade. Como ela sempre dizia: “Pobre não tem nada, meu filho, só tem
a própria honra”.
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