A
literatura de fantasia surge, no século XIX, como uma reação romântica ao
racionalismo iluminista. No lugar da ciência e da tecnologia pregados por
movimentos como o samsionismo, o romantismo colocava as velhas lendas, bruxos,
duendes e gigantes da Idade Média. A opera O anel de Nibelungo, de Richard
Wagner, é exemplo disso. Posteriormente, esse novo gênero vai dar origem a todo
um novo gênero, com exemplos como O senhor dos anéis, Crônicas de Narnia e
Harry Potter.
Entretanto,
todas essas obras sempre tiveram um pé
no romantismo dos primeiros tempos. A Guerra dos tronos, de George R.R. Martin
mostra que o gênero cresceu e agora já namora com o realismo.
O
livro fala sobre um mundo em que as estações podem durar décadas e que existem
dragões, zumbis e lobos gigantes. Mas, contracenando com esses seres
fantásticos, Martin coloca personagens tão reais que parecem existir de fato.
Com óbvia inspiração na Idade Média, mas uma Idade Média real, o livro mostra
prostitutas, complôs, bebedeiras, sexo e muita, muita violência.
Os
protagonistas são a família Stark, Lorde Eddard, sua esposa Catelyn, seus
filhos Robb, Sansa, Arya, Brandon, Rickon e o bastardo Jon. Os capítulos,
titulados com os nomes dos personagens, acompanham a maior parte da família em
suas desventuras a partir do momento em que Eddard, senhor de um feudo no
norte, é convidado pelo soberano e amigo Robert para se tornar a mão do rei, o
que joga a todos no meio das intrigas da corte.
Mas
há dois personagens que, embora não sejam protagonistas desse primeiro livro,
chamam atenção: Danny, um sobrevivente da família real destronada por Robert,
que evolui de uma garota tímida e amedrontrada pelo irmão para uma mulher forte
(refletindo, provavelmente, o poder que as mulheres ganharam na Europa a partir
das Cruzadas) e Tyrion.
Tyrion
é um dos melhores vilões da literatura. Fiel ao realismo, Martin escreveu um
livro em que até o vilão é um personagem interessante, conflituoso, que, embora
rejeitado pela família, faz tudo para mantê-la no poder. Anão, aleijado e feio,
Tyrion compensa suas limitações físicas com um intelecto privilegiado e a
estratégia de um jogador de xadrez. Mesmo em situações em que o leitor o
imagina morto, ele consegue reverter a situação a seu favor. É tão interessante
que, a certo ponto, a maioria dos leitores começa a torcer por ele. Não
bastasse isso, ele se confraterniza com Jon, do clã Stark, por sentir que ambos
são excluídos. Desde já é um vilão que ficará imortalizado na literatura e na
cultura pop.
Aliás,
Tyrion representa bem algo que poderia ser uma máxima de Guerra dos Tronos:
nada é o que parece. Fã de quadrinhos, George Martin parece inspirar-se neles
para colocar reviravoltas em cima de reviravoltas na trama, muitas das quais
parecem seguir na direção do romantismo, mas logo dão uma guinada rumo à
realidade. A primeira transa do duende (como ele é chamado) representa bem esse
ponto de vista. Um dia ele e o irmão andavam pela estrada quando viram uma
jovem donzela sendo perseguida por malfeitores. O irmão tratou de perseguir os
ladrões, enquanto ele socorria a jovem. Foram para a cama e ele se apaixonou
tanto os dois se casaram, escondidos do pai. Ao saber, este obrigou o irmão a
revelar a verdade: a garota era na verdade uma prostituta e tudo não passara de
uma brincadeira para que o anão tivesse sua primeira noite de amor. Como lição,
o pai deu a “esposa” aos guardas, cada um dos quais a pagou com uma moeda de
prata: “ela tinha tantas peças de prata que as moedas escorregavam entre seus
dedos e rolavam para o chão. Lorde Tywin obrigou-me a ser o último. E deu-me
uma moeda de ouro para pagá-la, porque era um Lannister, e por isso valia
mais”.
Essa
guinada é visível também nos capítulos centrados em Sansa. Todos começam com um
insuportável tom açucarado, mas logo a realidade se revela. Exemplo disso é o
capítulo sobre o torneio, ao final do qual a herdeira do clã Stark descobre que
um rapaz morto durante o torneio foi na verdade assassinado.
Não
confie nos seus olhos, parece dizer o autor: o belo e atencioso príncipe pode
se revelar um vilão muito mais cruel do que o seu deformado segurança.
Outro
mérito de Guerra dos tronos é a questão das descrições. Um dos pontos mais
criticados em obras como O Senhor dos Aneis é o excesso de descrições de
paisagens, algumas delas insuportáveis. George Martin também as utiliza em
grande quantidade, mas prefere descrever ações (quase sempre num estilo
cinematográfico): “Gritando, Bran caiu da janela de costas para o vazio. Nada
havia a que pudesse se agarrar. O pátio correu ao seu encontro. Em algum lugar,
ao longe, um lobo uivava. Corvos voavam em círculos sobre a torre quebrada,
esperando milho”.
Em
outras ocasiões, as descrições são usadas para caracterizar os personagens: “Os
olhos dele abriram-se de repente e olharam-na, e neles nada havia além da
repugnância, nada além do mais vil desprezo. – Então vai – ele cuspiu. – E não
me toque”.
Não
por acaso, Guerra dos tronos deu origem a um seriado de sucesso pela HBO: o
livro é um ótimo roteiro, já decupado.
Em
tempo, vale lembrar que a iniciativa de George Martin de trazer o realismo para
a literatura de fantasia já havia sido usada por Robert Edward nas histórias de
Conan, que praticamente definiram o gênero espada e magia, mas as limitações
dos pulps onde este publicava suas histórias o impedia que avançar em todos os
sentidos. Sem esses limites, Guerra dos tronos eleva esse gênero a um novo
patamar.
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