terça-feira, junho 02, 2020

Medo e delírio em Las Vegas


A maioria dos jornalistas tem de si uma ideia de pessoas respeitáveis, que fazem matérias objetivas e insentas. Ninguém contribuiu mais para abalar esse mito do que o norte-americano Hunter Thompson no livro Medo e Delírio em Las Vegas, lançado recentemente pela L&PM.
Thompson foi um jornalista convencional durante muitos anos e chegou a ser correspondente internacional no Rio de Janeiro. Mas tinha pouca paciência com o trabalho normal de um repórter. No início dos anos 1960, foi mandado para cobrir um show de Joan Baez, mas embebedou-se, tomou várias drogas e acabou apagando. Perdeu o show e escreveu um texto completamente alucinado sobre a cultura hippie. Os leitores gostaram e a partir daí, Hunter se especializaria em fazer um tipo de jornalismo que ficou conhecido como gonzo: toda reportagem era sempre a sua versão sobre os fatos e não uma tentativa de mostrar isenção ou objetividade.
Exemplo disso aconteceu quando o periódico Scanlan´s Monthly mandou-o cobrir a corrida de cavalos em Derby, Kentuchy, em 1970.
Thompson inicia a matéria contando sua chegada na cidade. Sua primeira providência, claro, foi visitar o bar mais próximo. Lá, um morador local resolveu tirar sarro dele quando Thompson mentiu que era fotógrafo da Playboy: “Você vai tirar fotos de cavalos pelados?” “Vai haver encrenca. A minha tarefa é fotografar o motim”, respondeu Thompson. “Que motim?” “Na pista de corrida. No dia do turfe. Os panteras negras. Você não lê jornal? “.
O homem levantou a voz: “Deus do céu! O que está acontecendo com este país? Onde é possível escapar de tudo isso?”. “Aqui não, com certeza”, garantiu Thompson, mentindo descaradamente.
O resto da matéria é dedicada a contar as peripécias do jornalista, inclusive um jantar com o irmão no qual ele enche o restaurante de gás de pimenta. Pouco mais de três parágrafos são dedicados à corrida. O objetivo de Thompson é expresso por ele mesmo: “Ao contrário dos outros no camarote de imprensa, não estávamos interessados no que acontecia nas pistas. O objetivo era ver os verdadeiros animais em ação”.
É nessa reportagem que ele conhece o desenhista inglês Ralph Steadman, que se tornaria uma espécie de ilustrador oficial do gonzo jornalismo com seu traço psicodélico, com pessoas retratadas como monstros.
Medo e delírio em Las Vegas junta o texto lisérgico de Thompson com as imagens malucas de Steadman.
O livro inicia com uma frase emblemática: “Estávamos em algum lugar perto de Bartow, à beira do deserto, quando as drogas começaram a fazer efeito”.
 Thompson foi contratado por uma revista para fazer a cobertura do Mint 400, uma corrida off-road de motocicletas e levou consigo seu advogado samoano, chamado por ele de Dr. Gonzo. Os conselhos do advogado formam algumas da melhores partes do livro: “Como seu advogado, recomendo que compre uma motocicleta. É o único jeito de cobrir um evento desses de maneira correta”; “Isso aí não vai dar. Precisamos de crédito ilimitado”; “Bem ali tem um lugar chamado Fontes Mescal. Como seu advogado, recomendo que encoste o carro para a gente nadar um pouco”; “Como seu advogado, recomendo que enfie o pé no acelerador”.
Mais: o advogado o aconselha a alugar um carro veloz, sem capota, e encher o porta-malas de todo tipo de drogas e irem atrás do sonho americano.
O livro começa quando eles estão a caminho da corrida, as drogas começam a fazer efeito e Thompson é obrigado a parar de dirigir por causa das alucinações: “Melhor nem citar os morcegos”, pensa ele. “Não ia demorar para que o infeliz também os visse”.
Thompson logo descobre que a corrida é na verdade uma nuvem de poeira: “Sob qualquer ponto de vista convencional, a ideia de ‘cobir a corrida’ era absurda: seria como tentar acompanhar uma prova de natação numa piscina olímpica cheia de talco no lugar de água (...) Sem dúvida a corrida estava acontecendo. Eu havia testemunhado a largada; disso tinha certeza. Mas e agora, o que poderia fazer? Alugar um helicóptero? Entrar de novo na caminhonete? Zanzar pelo maldito deserto assistindo àqueles idiotas passando a mil pelos pontos de controle, uma a cada treze minutos?”.
A decisão é simplesmente esquecer a corrida e escrever sobre Las Vegas: “esta não é uma boa cidade para usar drogas psicodélicas. A própria realidade já é distorcida demais”, escreve ele. A cidade é 24 horas de jogo e o circo nunca para: “Use a espingarda para desgrudar os adesivos dos mamilos de uma mulher-macho de três metros e ganhe uma cabra feita de algodão-doce. Basta parar na frente desta máquina fantástica, meu amigo e, por 99 centavos sua imagem vai aparecer num telão de sessenta metros de altura bem no centro de Las Vegas. Pagando mais 99 centavos, você pode incluir uma mensagem gravada”.
O resultado é o esperado: Thompson mergulha no submundo de Las Vegas, toma todo tipo de droga, faz dívidas astronômicas em hoteis (“tínhamos pedido para aquele quarto tudo que as mãos humanas podiam carregar – incluindo umas seiscentas barras de sabonete Neutrogena transparente”) dos quais foge no meio da noite e surta a cada dois parágrafos, achando que vão prendê-lo ou atirar nele (“Um doutor em jornalismo não merece editar o boletim semanal da penitenciária”) e ainda tem de agüentar o advogado samoano ainda mais paranóico do que ele.
O resultado poderia ser um livro barra-pesada, mas acaba se tornando uma grande comédia sobre o sonho americano escrita por alguém que não se leva a sério e se entrega por inteiro no texto com uma coragem e cara de pau extraordinários.
O gonzo jornalismo criado por Hunter Thompson ajudou para derrubar o muro que separava jornalismo de humor, a experiência pessoal e da reportagem, abrindo caminho para programas como o Profissão Repórter, CQC e A Liga.
Medo e delírio em Las Vegas é o maior marco do gonzo. É leitura obrigatória para alunos de jornalismo que ainda não foram contaminados pela ditadura da pirâmide invertida.

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