segunda-feira, setembro 28, 2020

Propostas discordantes no jornalismo


Na história do jornalismo percebemos que nem todos leram pela cartilha da objetividade e da pirâmide invertida.

Alguns movimentos e publicações discordavam abertamente do atual modelo de reportagens e apresentavam propostas de mudanças.

Uns se contentaram em mudar a pauta, realizando publicações sobre assuntos pouco enfocados pela imprensa estabelecida. É o caso da imprensa alternativa.

Outros propuseram uma mudança radical até mesmo no jeito de fazer jornalismo. Eu as chamei de "propostas discordantes". Tais propostas colocaram em xeque nossa idéia de imprensa e nos fizeram perguntar o que realmente caracteriza o jornalismo.
Capote, um dos criadores do novo jornalismo


Novo jornalismo

A proposta de aproximar o jornalismo da literatura não é nova. Muitos escritores transformaram reportagens em obras literárias. Exemplo disso é o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, um verdadeiro marco tanto da imprensa quanto da literatura brasileira.

Mas o grande mentor dessa relação foi o norte-americano Truman Capote. Ele acreditava que a reportagem poderia ser uma arte tão requintada quanto qualquer outra forma de prosa, tais como o ensaio, o conto e a novela.

Para provar sua tese, ele procurou o tipo mais baixo de matéria jornalística: a entrevista com astros.

Os brasileiros sabem o quanto é descartável esse jornalismo praticado por revistas como Contigo, Caras e Quem.

Capote queria transformar esse tipo de matéria em uma arte autêntica, provando que o jornalismo poderia ser um gênero literário.

Para isso ele procurou o ator Marlon Brando, então no auge da fama. Capote passou uma noite com Brando em um apartamento em Kioto, no Japão, onde o astro estava filmando Sayonara, de Joshua Logan.

Os dois conversaram a noite inteira, sem que Capote gravasse ou fizesse anotações. Ele acreditava que esses recursos criam um clima artificial e destrói a naturalidade por parte do entrevistado.

O resultado foi publicado na revista New Yorker em 1956 com o título de "O Duque em seus domínios".

Estava criado o Novo Jornalismo.

O texto mostrava o ator de maneira até então inédita e antecipava até mesmo a gordura de Brando (que chegou a pesar, nos anos seguintes, 120 quilos). O ator admitiu, entre outras coisas, que se sentia ofuscado pelo sucesso: "Um excesso de êxito pode arruinar um homem tão irremediavelmente quanto um excesso de fracasso".

Brando aceitou seu perfil como fidedigno, mas disse que se sentiu traído: "Aquele pequeno canalha passou a metade da noite me contando seus problemas. Achei que o mínimo que poderia fazer era contar-lhe os meus".

Em 1959, ao saber que quatro membros de uma família de fazendeiros haviam sido assassinados brutalmente (eles foram amarrados, amordaçados e receberam tiros na cabeça), Capote rumou para a cidade em que havia acontecido o crime, Garden City, decidido a chegar ao ápice de seu projeto de narrar a realidade como ficção.

Passou cinco anos pesquisando. Entrevistou, perguntou, levantou os menores pormenores do caso, tornou-se amigo dos policiais e até dos criminosos, dois assaltantes de nome Perry Smith e Dick Hickock.

Antes de publicar o relato, ele passou o texto para checadora da revista, Sandy Campbell, que verificou todas as informações. A história foi publicada em capítulos no New Yorker e depois reunida no livro A Sangue Frio, um marco do Novo Jornalismo.


A idéia dessa proposta discordante era dar ao leitor algo mais do que os fatos: a vida subjetiva e emocional dos personagens. Isso fazia com que os autores incluíssem no texto até mesmo o pensamento dos personagens.

Outra técnica do new journalism era a composição: fundir a história de várias pessoas e apresentá-las em uma personagem só, fictício. Além disso, essa corrente defendia o jornalismo investigativo: as histórias deveriam ser exaustivamente pesquisadas e checadas nos mínimos detalhes.

No Brasil o auge do Novo Jornalismo foi a revista Realidade, da editora Abril, que dourou de meados da década de 60 a meados da década 70 e só acabou por causa da censura.



Jornalismo gonzo

O nome mais importante do gonzo jornalismo é o norte-americano Hunter S. Thompson.

Na década de 70 ele foi mandado pela revista Rolling Stone para cobrir uma corrida de motos. Gastou todo o dinheiro que haviam lhe dado com drogas, carros, fez contas em hotéis e saiu sem pagar, arranjou problemas com a polícia e, para piorar, só chegou na corrida de motos quando esta já havia acabado. Ao invés de ser demitido, virou celebridade e acabou criando uma nova forma de fazer jornalismo: o gonzo. O batismo foi feito pelo repórter Bill Cardoso. Ao ver os textos de Hunter, ele comentou: "Não sei o que está fazendo, mas você mudou tudo. Isso está totalmente gonzo".

Hunter continuou produzindo reportagens, sempre sob o lema: "Quando as coisas ficam bizarras, os bizarros viram profissionais".

O gonzo, por suas próprias características, não é uma fórmula que possa ser aplicada a um texto. É muito mais uma atitude diante do mundo e do jornalismo.

É possível, no entanto, perceber algumas características no gonzo jornalismo.

A primeira delas é um ataque radical à teoria da objetividade jornalística.

Para os adeptos do gonzo, o discurso da objetividade quer criar confiança, convencer o leitor de que é isenta, livre de desejos, ideologias, medos e interesses de quem escreve.

Ou seja, a objetividade é um discurso de mascaramento da ideologia que permeia o jornalismo. Não interessa ao gonzo se essa ideologia é neo-liberal ou marxista. O importante é o princípio da objetividade serve para esconder o fato de que nenhuma linguagem é neutra.

O gonzo tira essa máscara e daí surge sua primeira característica formal: os textos são sempre escritos em primeira pessoa. O objetivo não é apenas narrar fatos, mas relatar a experiência de um determinado indivíduo com eles.

O fator de haver um mediador entre a experiência e o leitor é destacada, e não escondida.

O gonzo também quer ir contra a imagem que os jornalistas fazem de si mesmos, de sérios e respeitáveis (exemplo disso é o âncora da Record, Boris Casoy).

Tal imagem contribui para transformar o jornalismo em "discurso autorizado". O jornal é a expressão da verdade, e não de "uma verdade".

Em contraste, os gonzo-jornalistas não pretendem ser nem sérios nem respeitáveis.
Hunter Thompson, o criador o gonzo jornalismo.


A carta de princípios da irmandade Rauol Duke (pseudônimo utilizado por Hunter para evitar problemas com a polícia) nos diz que o repórter "deve se envolver na história e alterar ao máximo os acontecimentos dentro da media do Impossível, de forma a transformá-la não em um mero RELATO do evento, mas sim em uma história ENGRAÇADA e CÁUSTICA".

Entretanto, a ficção pura e simples não serve ao gonzo. Ainda segundo a mesma carta, "o conteúdo dos textos deve ser JORNALÍSTICO, ou seja: um fato precisa estar acontecendo necessariamente".

Para fazer jornalismo gonzo não é necessário procurar fatos bizarros. Aliás, o ideal é abordar fatos normais, banais, sob ponto de vista bizarro e pessoal.

Exemplos de jornalismo gonzo estão se tornando cada vez mais freqüentes na imprensa brasileira. Arthur Veríssimo, da revista Trip, foi o primeiro a celebrizar esse estilo no Brasil. Em uma de suas matérias mais antológicas, ele passou um dia como animador de festas infantis.

A revista Zero, recentemente lançada pelas editora Pool e Lester, também traz características gonzo.

O número de estréia trouxe uma matéria sobre as deusas-vivas do Nepal. O título e subtítulo deixam claro o distanciamento que a procura manter do jornalismo convencional: "É DURO SER DEUSA - No Nepal, o dom divino já nasce com data de expiração. Luiz Cesar Pimentel passou uma tarde na casa de uma ex-deusa viva e mostra a realidade casca-grossa das divindades locais".

O texto é em primeira pessoa e não esconde o ponto de vista do repórter:

Por mais que eu tenha me esforçado no parágrafo anterior para dar a real dimensão da discrepância de uma deusa dormir em um sofá-cama e possuir um vira-lata (que parece uma mistura de poodle com nada) como campainha, a cena para quem passa um período no país não é tão assombroso assim. No Nepal, todas as situações têm uma forte tendência ou a não funcionar ou a funcionar de um jeito totalmente estapafúrdio. E, como você deve imaginar, dá tudo certo no final. Ou quase.

Até mesmo a grande imprensa tem se rendido à bizarrice do jornalismo gonzo, embora de maneira mais comportada.

É na, até pouco tempo sisuda, revista Superinteressante que encontramos um exemplo típico de jornalismo gonzo.

Na matéria "Puro Rock'n'roll", publicada na Superinteressante, número 8, ano 15 de agosto de 2001, o repórter Dagomir Marquezi se disfarçou de saxofonista do grupo Jota Quest e participou de show em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Como uma típica matéria gonzo, o jornalista também é personagem e o texto é em primeira pessoa:

Não bastava tocar: um trio de metais que se preze também dança. Lembrava-me dos muitos shows de James Brown que assistira. "Um passo para a direita, junta os pés. Um passo para a esquerda, junta os pés". Eu operava a coreografia e meus colegas de metais não se agüentavam de vontade de rir da minha picaretagem artística. O baixista PJ e o tecladista Márcio Buzelin, entre risadas disfarçadas, também faziam sinais de que estava me saindo bem.

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