sábado, novembro 07, 2020

Roteiro de quadrinhos: a jornada do horror

 



Nos manuais de roteiro há, normalmente, uma visão sobre a estrutura da história chamada Jornada do herói. Nela, um persogem é retirado de sua zona de conforto e obrigado e enfrentar diversos desafios. No final, vemos sua redenção e sua volta para o mundo normal trazendo algum ensinamento.

Existe um gênero, no entanto, que rompe completamente com essa estrutura: o terror. No terror, o protagonista encontra não a redenção, mas a perdição.

Nesse sentido, o terror é herdeiro direto da tragédia. Aristóteles já tinha descrito a tragédia como um gênero protagonizado por um herói que tem uma falha trágica, a hamartia, que o faz enfrentar seu destino, seus companheiros e até os deuses. No final, essa falha o leva à destruição.

Na tragédia grega, o herói era sempre alguém com grandes poderes, mas maculados pela arrogância, fazendo com que eles se sintam melhores que os deuses.

No terror, a característica do protagonista geralmente se resume à sua falha de caráter, que pode ser não a arrogância, mas a falta de empatia, a ganância ou qualquer outro defeito que se sobrepõe às qualidades. A jornada do herói no terror, portanto, o leva a um caminho não de rendenção de seus defeitos, mas de perdição em decorrência desses mesmos defeitos.

Uma pequena amostra de histórias da EC Comics serve para demonstrar essa característica. 



Em “Papel principal”  três atores tentam entrar em uma peça teatral shakespeariana. Um deles se oferece e é aceito, mas é morto pelo outro. O mesmo ocorre até o terceiro. No final, o ator descobre que está num hospício e seu papel é ser a cabeça que Hamlet segura.

 


Em “Com um pé na cova”  um coveiro explora uma viúva, fazendo um funeral com materiais de terceira, mas vendendo-os com se fossem de luxo. Depois sofre um acidente e fica paralisado. Seu sócio cuida de seu funeral e usa todo o seu espólio numa farsa, um funeral pobre, que é orçado como rico.

 

Nos dois exemplos acima a falha que leva os protagonistas à ruína é a ganância.



Em “No raiar do dia’ um camponês encontra linda garota em casa. Apaixonam-se e transam. Enquanto ela dorme ele ouve que uma louca assassina ronda a região. Temendo que esteja com a assassina dentro de casa, e a coloca para fora e tranca a porta. Nisso aparece a verdadeira louca e mata a garota para ficar com sua roupa.

No exemplo acima, é a covardia que leva o protagonista a ser punido.

Se a covardia leva o protagonista à perdição, imagine o assassinato. Na mesma edição há duas histórias em que a falha moral dos protagonistas é serem assassinos. 

Em “Dia de praia” um rapaz mata a namorada jogando-a da montanha russa. Para se disfarçar, ele vai para a praia, esconde suas roupas e se mistura aos banhistas. Conhece algumas meninas, que, por brincadeira, o puxam para a água. Mas ele não sabe nadar e morre afogado.

Em “O assassino” , um assassino profissional é contratado para apagar um cara por 500 dólares. Ele o persegue pela cidade até encurralá-lo em um local escuro e vazio, sem testemunhas. Quando atira, descobre que está na verdade em um teatro, diante de toda uma plateia. 

Em Phobus o protagonista sucumbe moralmente


Essa estrutura narrativa pode ser observada em várias de minhas histórias produzidas em parceria com Bené Nascimento e publicadas na década de 90 em revistas como Calafrio e Mephisto.

Em Phobus, por exemplo, vemos um personagem que se alimentava do medo das pessoas. Uma vez preso em um hospício, o poder se desprendeu dele e passou a percorrer o mundo matando pessoas e se alimentando de seus medos. No final, o protagonista não morre, mas sucumbe moralmente ao aceitar de volta o poder, o que significa que ele voltará a matar.


Se Carrie fosse uma história de super-herói, terminaria com a redenção da protagonista


Saindo dos quadrinhos e entrando na seara da literatura do terror, um dos clássicos do gênero mais conhecidos é Carrie, a estranha. É a história de uma menina com poderes telecinéticos dominada por uma mãe fanática religiosa que, após ser vítima de uma brincadeira de mau gosto, praticamente destrói uma cidade, matando centenas de pessoas.

Como nas jornadas comuns, a protagonista tem um problema a ser resolvido, ou melhor, dois: a relação com a mãe e aprender a lidar com seus poderes. Numa narrativa super-heroiesca, que segue a jornada do herói, ela alcançaria a redenção ao conseguir controlar os seus poderes ao mesmo tempo em que controla seus problemas psicológicos. Isso aconteceria ao mesmo tempo em que ela se concilia com a mãe. Como é uma narrativa de horror, ela sucumbe ao seu lado mais sombrio, o que a leva à perdição.



O mesmo ocorre em uma história minha em parceria com Bené Nascimento. Aparentemente uma história de super-herói, a Família Titã é, na verdade, uma jornada do horror. O personagem principal, Tribuno, é dominado pelo sentimento de vingança, o que o leva a matar os dois outros heróis e se matar no final.

Nem todas as histórias são sobre heróis que empreendem uma jornada e saem dela renascidos. Algumas são sobre protagonistas que sucumbem durante a jornada, seja física ou moralmente. Se a jornada do herói nos aponta um caminho de evolução espiritual, a jornada do horror nos alerta para o que acontece quando somos dominados por nossas falhas.


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