segunda-feira, dezembro 28, 2020

O Eternauta 1969

 


Em 1969 a revista Gente (uma espécie de Caras argentina) resolveu publicar quadrinhos, reflexo direto da popularidade da nona arte no país portenho. Para isso chamaram o maior roteirista do pais, Hector Oesterheld, que decidiu por uma releitura de seu clássic de FC, O Eternauta, mas agora desenhado pelo revolucionário Alberto Breccia.
A versão anterior da história já tinha vários aspectos de metáfora política. Exemplo disso era o que o roteirista chamava de herói coletivo: a situação nunca era resolvida por uma pessoa, um herói, mas por um grupo. Mas em 1969 Oesterheld estava muito mais envolvido com política e tornou as metáforas muito mais claras.
Na história original, a Terra era invadida por extraterrestres em um programa de extermínio em escalas, começando por uma neve mortal. Na nova versão, as grandes potências fazem um acordo com os invasores e entregam a América do sul em troca de não serem molestados.
“Estamos na situação dos incas ou dos astecas lutando contra os europeus... o inimigo vem de outro sistema solar. Conseguiu convencer, sabe-se lá como, os Estados Unidos, a Rússia e as outras grandes potências a dividirem a terra com eles”, diz um dos personagens à certa altura.
Até mesmo a neve ganha nítidos contornos de metáfora política: “Os países que nos exploram, as grandes multinacionais, já eram nossos invasores... suas neves mortais eram a miséria, o atraso, nossos próprios egoísmos manipulados do exterior”.
Por outro lado, nunca vemos os invasores de fato, mas seus lacaios, seres recolhidos em outros planetas, controlados por um implante que os obriga a obedecer. No final, até mesmo humanos são usados assim. Mais uma metáfora: a dos que se voltam contra seu próprio povo para defenderem os exploradores.
Hábil como poucos, Oesterheld consegue transformar essa grande metáfora política em um triller irresistível, explorando não só a luta pela sobrevivência e a guerra contra os exploradores, mas também os pequenos dramas, como do casal que abre a janela da casa para ser exposto aos flocos de neve e assim, morrerem juntos. Escritor fenomenal, Oesterheld conduz o leitor pela narrativa, como um guia de museu de aponta aqui e ali pequenos detalhes que o leitor teria ignorado no grande quadro geral. E seu texto é simplesmente irretocável.

Para completar o roteiro e o texto brilhantes, temos o desenho de Alberto Breccia.
Breccia é simplesmente um dos mais revolucionários desenhistas de quadrinhos de todos os tempos e nessa obra parece ainda mais inspirado. Há de tudo: quadros totalmente calcados no claro-escuro, quadros hachureados, aguadas, fotografias... Breccia parecia disposto a se superar a cada sequência, inclusive na composição inspirada.
Na página em que um dos personagens sai da casa e morre sob efeito da neve mortal, o quadro preto apenas com a figura e a neve em branco começa com quase toda a largura da página e vai diminuindo, representando a vida se esvaindo do personagem.
Quando os primeiros extraterrestres surgem, a imagem é um emaranhado de hachuras, claro-escuro e aguada, como que para preservar-lhes o ar de mistério. Em contraparte aos invasores, as mulheres são todas belíssimas.

Entretanto, o diretor da revista não gostou. É possível que ele tenha desgostado do conteúdo político numa revista que abria diversas páginas para entrevistar Rockfeller. Mas a desculpa oficial é de que o desenho não era bom. Para reforçar esse argumento foi usada inclusive uma carta de leitor (que, acredita-se, tenha sido escrita pelo próprio editor).
Para não deixar a história incompleta, Oesterheld é obrigado a apressar a narrativa. O texto, até então equilibrado, transforma-se em grandes blocos, sumarizando diversos acontecimentos em um único quadro.
Ainda assim, O Eternauta 1969 é um clássico absoluto, uma ótima amostra de como o quadrinho argentino foi durante algum tempo um dos melhores do mundo. Esse clássico, até então inédito aqui, foi finalmente publicado no Brasil este ano pela editora Comic Zone. Capa dura, papel de boa qualidade, item essencial na estante de qualquer colecionador de quadrinhos.

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