terça-feira, novembro 30, 2021
Os super-heróis nacionais
Roteiro de quadrinhos: a jornada do horror
Nos manuais de roteiro há, normalmente, uma visão sobre a estrutura da história chamada Jornada do herói. Nela, um personagem é retirado de sua zona de conforto e obrigado e enfrentar diversos desafios. No final, vemos sua redenção e sua volta para o mundo normal trazendo algum ensinamento.
Existe um gênero, no entanto, que rompe completamente com essa estrutura: o terror. No terror, o protagonista encontra não a redenção, mas a perdição.
Nesse sentido, o terror é herdeiro direto da tragédia. Aristóteles já tinha descrito a tragédia como um gênero protagonizado por um herói que tem uma falha trágica, a hamartia, que o faz enfrentar seu destino, seus companheiros e até os deuses. No final, essa falha o leva à destruição.
Na tragédia grega, o herói era sempre alguém com grandes poderes, mas maculados pela arrogância, fazendo com que eles se sintam melhores que os deuses.
No terror, a característica do protagonista geralmente se resume à sua falha de caráter, que pode ser não a arrogância, mas a falta de empatia, a ganância ou qualquer outro defeito que se sobrepõe às qualidades. A jornada do herói no terror, portanto, o leva a um caminho não de rendenção de seus defeitos, mas de perdição em decorrência desses mesmos defeitos.
Uma pequena amostra de histórias da EC Comics serve para demonstrar essa característica.
Em “Papel principal” três atores tentam entrar em uma peça teatral shakespeariana. Um deles se oferece e é aceito, mas é morto pelo outro. O mesmo ocorre até o terceiro. No final, o ator descobre que está num hospício e seu papel é ser a cabeça que Hamlet segura.
Em “Com um pé na cova” um coveiro explora uma viúva, fazendo um funeral com materiais de terceira, mas vendendo-os com se fossem de luxo. Depois sofre um acidente e fica paralisado. Seu sócio cuida de seu funeral e usa todo o seu espólio numa farsa, um funeral pobre, que é orçado como rico.
Nos dois exemplos acima a falha que leva os protagonistas à ruína é a ganância.
Em “No raiar do dia’ um camponês encontra linda garota em casa. Apaixonam-se e transam. Enquanto ela dorme ele ouve que uma louca assassina ronda a região. Temendo que esteja com a assassina dentro de casa, e a coloca para fora e tranca a porta. Nisso aparece a verdadeira louca e mata a garota para ficar com sua roupa.
No exemplo acima, é a covardia que leva o protagonista a ser punido.
Se a covardia leva o protagonista à perdição, imagine o assassinato. Na mesma edição há duas histórias em que a falha moral dos protagonistas é serem assassinos.
Em “Dia de praia” um rapaz mata a namorada jogando-a da montanha russa. Para se disfarçar, ele vai para a praia, esconde suas roupas e se mistura aos banhistas. Conhece algumas meninas, que, por brincadeira, o puxam para a água. Mas ele não sabe nadar e morre afogado.
Em “O assassino” , um assassino profissional é contratado para apagar um cara por 500 dólares. Ele o persegue pela cidade até encurralá-lo em um local escuro e vazio, sem testemunhas. Quando atira, descobre que está na verdade em um teatro, diante de toda uma plateia.
Em Phobus o protagonista sucumbe moralmente |
Essa estrutura narrativa pode ser observada em várias de minhas histórias produzidas em parceria com Bené Nascimento e publicadas na década de 90 em revistas como Calafrio e Mephisto.
Em Phobus, por exemplo, vemos um personagem que se alimentava do medo das pessoas. Uma vez preso em um hospício, o poder se desprendeu dele e passou a percorrer o mundo matando pessoas e se alimentando de seus medos. No final, o protagonista não morre, mas sucumbe moralmente ao aceitar de volta o poder, o que significa que ele voltará a matar.
Se Carrie fosse uma história de super-herói, terminaria com a redenção da protagonista |
Saindo dos quadrinhos e entrando na seara da literatura do terror, um dos clássicos do gênero mais conhecidos é Carrie, a estranha. É a história de uma menina com poderes telecinéticos dominada por uma mãe fanática religiosa que, após ser vítima de uma brincadeira de mau gosto, praticamente destrói uma cidade, matando centenas de pessoas.
Como nas jornadas comuns, a protagonista tem um problema a ser resolvido, ou melhor, dois: a relação com a mãe e aprender a lidar com seus poderes. Numa narrativa super-heroiesca, que segue a jornada do herói, ela alcançaria a redenção ao conseguir controlar os seus poderes ao mesmo tempo em que controla seus problemas psicológicos. Isso aconteceria ao mesmo tempo em que ela se concilia com a mãe. Como é uma narrativa de horror, ela sucumbe ao seu lado mais sombrio, o que a leva à perdição.
O mesmo ocorre em uma história minha em parceria com Bené Nascimento. Aparentemente uma história de super-herói, a Família Titã é, na verdade, uma jornada do horror. O personagem principal, Tribuno, é dominado pelo sentimento de vingança, o que o leva a matar os dois outros heróis e se matar no final.
Nem todas as histórias são sobre heróis que empreendem uma jornada e saem dela renascidos. Algumas são sobre protagonistas que sucumbem durante a jornada, seja física ou moralmente. Se a jornada do herói nos aponta um caminho de evolução espiritual, a jornada do horror nos alerta para o que acontece quando somos dominados por nossas falhas.
Daniel Defoe – o náufrago do destino
Hipocondríacos
- Ei, não pode entrar agora!
- Rafael, Rafael! Você está bem? Vim correndo quando soube que você estava doente.
- Por favor, ainda não é o horário de visitas. Como a senhora conseguiu entrar? - perguntou a enfermeira, puxando a moça para fora.
- Não, não me afaste do meu Rafael! Por favor, me diga: ele está bem?
Nisso o doente se mexeu no leito, murmurando:
- Beatriz? Você está aí?
Foi o bastante. A mulher se desvencilhou dos braços da enfermeira e se jogou aos pés da cama.
- Rafael, Rafael, você ainda está vivo?
- Beatriz, você está aí? Eu não consigo vê-la...
- Mas ele só está... - interveio a enfermeira.
- Santo Deus, o que fizeram com o meu amado?! Você consegue me ouvir, querido?
- Beatriz? É você mesmo? Agora que vou morrer, quero que saiba que te amo...
- Oh, Rafael! Eu também te amo. Do fundo do meu coração...
- Beatriz, por favor, me dê um último beijo.
Houve um minuto de silêncio, ao fim do qual Beatriz pulou sobre ele, num último e ardoroso beijo de amor. A enfermeira tentou impedi-la, mas era impossível até mesmo saber quem era quem no meio dos aparelhos, seringas e tubos.
- Querida, você sabe o quanto eu amo você. - garantiu ele, depois que se desgrudaram. Não chore por mim. Também quero que você arranje outro homem. Não perca sua juventude por mim...
- Não, não me diga isso, meu amor, você vai sobreviver... E eu jamais terei outro homem...
Ficaram em silêncio. Beatriz enxugava as lágrimas com um lenço.
- Querida, agora que estou morrendo, acho que deveria saber de uma coisa. Lembra-se de Ana?
- A Ana?
- Sim, aquela estudava com você quando nos conhecemos...
- Rafael, você não...
- Eu tive um caso com ela.
- Não, não acredito... não é possível!
Ficou repetindo isso, balançando a cabeça em negativa, a enfermeira parada num canto, os olhos arregalados, sem saber o que fazer....
- Beatriz... agora que estou morrendo, não faz mais sentido esconder meu caso com Maria...
- A minha melhor amiga? Desgraçada!
- Calma, foi coisa pequena: durou só dois anos...
- Dois anos? Seu safado! Cretino!
- Cretino, eu? Pensa que não sei do Paulo?
Beatriz ficou estática.
- Paulo?
- Pensa que não sei? Tenho até fotos...
- Seu cretino! - gritou a mulher e pulou no pescoço dele.
- Gasp, gasp - fez o doente, envolvendo com as mãos o pescoço de Beatriz, que caiu no chão, sob ele.
Rolaram pelo chão do hospital até perderem as forças e só então caíram nos braços um do outro, jurando:
- Beatriz, eu te amo.
- Também te amo, Rafael.
A enfermeira ficou alguns instantes estarrecida, depois saiu do quarto, murmurando consigo:
- Esses hipocondríacos... e era só uma infecção intestinal.
Aquaman – Os Outros
Aquaman – os outros é um arco de histórias da revista Aquaman escrito por Geoff Johns e desenhado por Ivan Reis e Joe Prado que foi do número 7 ao 13 e aqui foi reunido em álbum capa dura pela Panini em 2016.
A história, que tem como vilão o Arraia Negra, gira em torno de um grupo que esse Aquaman dos Novos 52 teria feito parte, Os Outros. Na trama, o Arraia está matando os integrantes da equipe para se apoderar de artefatos ligados ao reino de Atlântida. A narrativa, aliás, começa com a morte de uma dessas heroínas, a Vidente. Depois pula para Aquaman e Meera salvando um navio em uma tempestade, que depois pula para os dois indo atrás de um cientista que estaria de alguma forma ligado ao Arraia Negra. Quando estão conversando com ele, uma das integrantes do grupo Os outros aparece para matar o cientista, mas desiste depois de uma luta com Meera.
Parece confuso? Isso é a apenas o primeiro capítulo. A confusão só aumenta, assim como situações que não se sustentam, como a briga das duas heroínas na primeira parte. Acrescente a isso flash backs, uma narrativa que vem e volta, com grandes pulos, personagens que estão aqui numa página e estão a centenas de quilômetros na página seguinte. Coloque mais um Aquaman que só pensa em matar o Arraia Negra e chega a cogitar deixar dezenas de pessoas morrerem, dando a impressão de que, para contrabalançar a imagem humorística do personagem, o roteirista resolveu transformá-lo num anti-herói, o que definitivamente não combina com o personagem.
E a cereja do bolo: uma solução simplesmente inverossímil para o conflito.
Geoff Johns é um ótimo roteirista, mas nessa série parece ter perdido a mão. No final, o álbum vale mesmo pelas artes de Ivan Reis e Joe Prado, que dão um verdadeiro show.
segunda-feira, novembro 29, 2021
As vidas de Chico Xavier
Superman – entre a foice e o martelo
Conan – Escravo nas galés
Roy Thomas está tão associado ao Conan que é difícil
imaginar uma história em quadrinhos do bárbaro escrita por outra pessoa. No
entanto, uma pessoa que conseguiu escrever ótimas histórias do personagem foi
Bruce Jones.
A Ilha da Aranha, publicada em Conan The Barbarian 140 e 141
é um exemplo disso. Com desenhos do mestre John Buscema, Jones conta uma
tremenda uma história, repleta de ação e terror, duas características
essenciais das histórias originais do bárbaro.
A história começa com Conan sendo levado para um navio... |
A história começa com Conan desacordado sendo carregado para
dentro de um navio. O capitão reclama: “Vocês levaram metade da noite, Frank!”.
“Este cimério é forte! A droga levou o dobro do tempo para agir!”, responde o
marinheiro.
A razão pela qual Conan está sendo levado desacordado para o
navio só é explicada depois, em um flash back.
... a razão para isso só é explicada num flash back. |
O Capitão estava na noite anterior bebendo em um bar quando
foi abordado por uma prostituta. Desconfiado de que ela queria roubá-lo, ele
ameaçou deformar seu rosto com o gancho que usa no lugar da mão esquerda. Conan
não só impediu que ele fizesse isso como ainda o derrubou, fazendo com que ele
se tornasse motivo de riso.
A cena que vemos no início é, portanto, resultado de uma
vigança.
Segue-se uma sequencia de eventos: o cimério é quase morto,
acaba sendo colocado como escravo nas galés e mata o capataz.
A história faz referência à mitologia lovecraftiana. |
Enquanto isso o capitão, num interlúdio romântico com uma
moça apavorada, cujo pai foi assassinado na sua frente, resolve visitar uma
ilha. E os escravos, assim como a tripulação vão junto para coletar alimentos.
Tudo é, no entanto, uma estratégia de vingança do pai da moça, que não morreu
graças às magia negra, com direito até mesmo a uma homenagem a Lovecraft: “Esse
foi o preço que paguei aos deuses negros de Rlyeh! Eu supliquei aos filhos do
grande Ctchulhu e, em pagamento, eles me fizeram este castelo... e completaram
minha vigança contra o odiado Davalte!”.
A sequência dos zumbis-aranhas é eletrizante. |
Claro que o homem ficou louco e a vingança acaba se voltando
também contra Conan, a moça e um marinheiro. Segue-se uma sequência alucinante
em que os três são perseguidos por zumbis controlados por aranhas, algo ainda
mais destacado pela arte dinâmica de John Buscema.
No Brasil essa história foi publicada pela editora Abril em Conan, o bárbaro 13.
Sherlock Time, de Oesterheld e Breccia
Mort Cinder, o homem das mil mortes
domingo, novembro 28, 2021
Groo amigos e inimigos
Groo é um dos melhores quadrinhos de humor de todos os tempos. Criado por Sérgio Aragonés (com textos de Mark Evanier), o título é garantia absoluta de boas gargalhadas. Os dois volumes de Groo – amigos e inimigos, lançados pela Mythos em 2017, são ótimos exemplos disso.
Os álbuns apresentam encontros do aparvalhado bárbaro com alguns dos seus principais inimigos (que são muitos) e amigos (que são poucos).
A primeira historia do segundo volume mostra a irmã de Groo, a rainha Grooella, às voltas com um rei vizinho em uma guerra de cartas. A troca de ofensas extrapola o razoável quando o rei diz que Grooella é parente do Groo, uma ofensa tão grande que faz com que ela convoque imediatamente seu exército e o mande ao combate. Só que é um estratagema: a ideia é aproveitar que o castelo está desprotegido e tomá-lo. No caminho as forças de Groella encontram Groo, que se se põe a atacar os soldados até se informado que aquele é o exército de sua irmã, o que faz com que e ingresse em suas fileiras, para desespero de todos. Um dos soldados resume a situação: “Nem sei o que é pior”. Claro que no final, Grooela se dá muito mal, o que não poderia ser diferente para quem tem Groo como aliado.
Uma página dupla repleta de detalhes que só Aragonés sabe fazer. |
Em outra história, Groo encontra o Sábio, que pretende resolver o problema de aldeões, que pagam um caro pedágio para atravessar uma ponte. Eles poderiam construir uma outra ponte, mas o rei com certeza a destruiria antes que estivesse pronta. Tudo parece se resolver quando chega Groo. Nenhum soldado seria louco de atacar a ponte guardada por ele. Mas o que parece a solução vira um desastre absoluto.
Mas talvez a melhor história seja a última, como Tecelão, uma espécie de jornalista, que conta as proezas de Groo. Precisando de mais relatos, ele passa a seguir o errante, pronto para narrar os desastres provocados por ele. Mas acontece o oposto: nunca há nenhum desastre produzido por Groo pela simples razão de que, sempre que ele se aproxima de uma aldeia, os próprios aldeões colocam fogo nela para evitar que Groo destrua o local: “Se nós mesmos incendiarmos tudo, ele será obrigado a fugir... e talvez não tenha tempo de ceifar nenhuma vida”, explica um aldeão. A história guarda ainda uma fina ironia: sempre que o Tecelão resolve mentir em suas crônicas, ele acaba contando, involuntariamente, exatamente o que aconteceu.
Groo – amigos e inimigos é um ótimo exemplo de que Groo não é só engraçado. É também humor altamente inteligente.