sexta-feira, março 31, 2023

A divulgação científica nos quadrinhos

 

Defendida em 1996, minha dissertação de mestrado A divulgação científica nos quadrinhos - análise do caso Watchmen foi um dos primeiros trabalhos acadêmicos a analisar a relação entre HQs e ciência no Brasil. Tornou-se referência obrigatória inclusive sobre uso de gibis em sala de aula. Para ler, clique aqui.

A carpa e o dragão

 


Uma das características do roteirista Giancarlo Berardi (criador tanto de ken Parker quanto da criminóloga Júlia) é a sutileza com que ele consegue colocar informações em suas histórias de maneira absolutamente natural.
Exemplo disso é a história “A carpa e o dragão” publicado no volume J. Kendall – as aventuras de uma criminóloga especial, da editora Mythos.
A HQ se passa no passado da personagem, quando ela ainda era uma estudante e acompanha o professor à cena de um crime, um massacre realizado pela gangue Yakusa. À certa altura o professor dá uma bronca na aluna, advertindo-a que ela não conhece nada sobre o Japão. Isso a leva ao bairro japonês de Garden City e uma verdadeira aula sobre o oriente. Em sua pesquisa, Júlia entra em uma loja de livros e gravuras e acaba fazendo amizade com o jovem e elegante dono (pelo qual ela irá eventualmente se apaixonar).
Os diálogos inserem informações históricas de forma natural. 


Mestre absoluto do diálogo, Berardi (aqui com a ajuda de Lorenzo Calza) recheia de informações a conversa entre os dois sem parecer didático. Uma das técnicas, por exemplo, é a questão do presente histórico, em que eles falam dos autores das gravuras no presente, como se estivessem vivos, o que acaba se tornando uma anedota.
Por outro lado, um sonho de Júlia é usado para referir à famosa xilografia A onda, de Katsushiko Hokusai e, ao mesmo tempo, revelar os sentimentos da protagonista pelo dono da loja.
O roteiro ainda acerta ao mostrar as reuniões da Yakusa acontecendo num açougue, com os porcos dependurados refletindo os cadáveres da luta entre facções. Aliás, esse uso inteligente do cenário é usado, por exemplo, no momento em que o dono da loja conversa com Júlia e vemos em primeiro plano uma e um dragão, com os dois personagens no meio, revelando o conflito entre a paixão dos dois e a tradição.

Monstro do Pântano – Padrões de crescimento

 


No número 36 da revista Swamp Thing o Monstro do Pântano havia morrido envenenado pela radição do fuça radioativa.

No número 37 ele renasceu, brotando novamente no solo. Esse renascimento era simbólico. Representava também uma mudança no título e no próprio personagem, que a partir daí descobriu que poderia deixar um corpo morrer num local e ressurgir em outro local (posteriormente essa habilidade permitiu a ele até mesmo viajar para outros planetas). Mas também foi marcada pelo surgimento de um novo personagem: John Constantine. O anti-herói surgira a pedido dos desenhistas John Totleben e Stephen Bissette, que eram fãs do Sting e queriam desenhá-lo nas histórias.

A imagem de John Constantine era baseada no cantor Sting. 


Alan moore criou um mago misterioso, cínico, que cativou os leitores desde sua primeira aparição. “Sou gente ruim, xará. Pode conferir por aí”, diz ele na sua primeira conversa com o Monstro do Pântano. Posteriormente essa característica do personagem seria sintetizada na frase: “Não diga nada de bom sobre mim, isso arruinaria a minha imagem”.

O interessante dessa HQ é que Moore transforma algo que deveria ser tedioso (uma planta nascendo em crescendo lentamente) numa tremenda trama de suspense ao intercalar com a narrativa paralela de Constantine.

Não diga nada de bom sobre mim. Isso arruinaria minha imagem. 


Constantine visita uma amiga punk que acredita que um campo de energia extragaláctico está se libertando, o que poderá provocar o fim do mundo. Já para um nerd, é o monstro lovecraftiano Cthulhu, para uma freira, é Satã. O certo é que algo maligno está se retornando e provavelmente, o Monstro do Pântano será essencial para evitar que esse mal ecloda.

Uma verdadeira aula de como intercalar a trama principal com a trama paralela. 


Uma das sequências mais geniais é quando um monstro sai da prancheta de desenho da namorada de Constantine para aterrorizá-la. As duas sequências se encaixam perfeitamente, com o texto de uma descrevendo o que está acontecendo na outra. À certa altura, por exemplo, constantine diz: “Até o seu namorado saber o que ele é, na vida dele sempre vai ter... algo faltando”. E o desenho mostra a folha de papel, sem o monstro que fora desenhado. Uma aula sobre como trabalhar uma trama paralela.

Cabal - quadrinho nacional de qualidade

 


Cabal é um fanzine editado por Clodoaldo Cruz que estreia o primeiro número com uma ótima seleção e excelente qualidade gráfica (na verdade, tem qualidade gráfica de revista). O destaque são as histórias no estilo noir de Cat´s city, centradas em um detetive casca-dura. A edição tem duas histórias do personagem, uma de autoria de Reno (que também assina a ótima capa e quarta capa) e outra com roteiro de Clodoaldo e Sidartha e desenhos de Hélcio Rogério, que conseguem manter o mesmo nível do criador da série. 

Merece destaque também "Loucura", com texto de Paulo Will e desenhos num estilo cartunesco deLaudo Ferreira Jr. (bem diferente de outros trabalhos dele, mas igualmente funcional para uma história de terror).

"O forasteiro" é outra HQ de terror, com roteiro de Edméia e A. Marcelino. Achei interessante a forte influência de Mozart Couto no desenho.
Nei Rodrigues contribui com uma história de fantasia intitulada "O herói esquecido". É uma surpresa agradável, principalmente pela forte influência de Flávio Colin, um dos maiores mestres nacionais que anda praticamente esquecido, mas, ao que parece, deixou herdeiros.
Em suma uma boa publicação alternativa que ainda guarda muito da influência do bom quadrinho 
brasileiro das décadas de 1980 e 1990. 

A revista pode ser pedida através do e-mail zinecabal@gmail.com.

Assunto de família, de Will Eisner


Will Eisner era um narrador  tão bom que conseguia fazer qualquer assunto, até uma prosaica reunião familiar, tornar-se uma HQ impressionante. Esse é exatamente o tema de Assunto de família, lançado no Brasil pela Devir em 2009.



Um homem de 90 anos vai fazer aniversário e a filha que cuida dele manda convites para todos os outros filhos. Nós acompanhamos cada um deles se arrumando para ir à festa e, no processo, conhecemos um pouco sobre cada um: o pilantra que arriscou todo o seu dinheiro numa companhia de petróleo e pode perder tudo; a senhora que casou por interesse e domina o marido; a garota bonita que tentou ser modelo e não conseguiu e agora vive com um bêbado...

Os personagens vão desfilando pelo leitor, que vai conhecendo suas personalidades, histórias de vida e principalmente, a razão pela qual a maioria está indo para a festa: o velho tem uma herança, que pode mudar a vida de todos.



A festa, como era de se esperar, acaba se tornando uma luta de egos e de interesses. Eisner usa um recurso interessante: quando cada um deles encontra com o pai, balões de pensamento trazem pequenos flashs deles com o genitor. Em outro momento, focado no pai, a narrativa é divida em dois, com presente à esquerda e passado à direita.

Mais do que uma leitura viciante, Assunto de família é uma verdadeira aula de narrativa sequêncial.   

The Toys – os brinquedos da nossa infância

 


Um dos verdadeiros tesouros escondidos na Netflix é a série de documentários The Toys. E isso tanto pelo tema quanto pelo conteúdo.
A abertura já dá o tom dos documentários: vemos crianças correndo para uma loja de brinquedos enquanto uma música, cantada ao estilo dos desenhos animados dos anos 1980 fala sobre a importância desses brinquedos: “Eles são baixos, mas nos fizeram sonhar alto. Vamos voltar no tempo e conhecer os bastidores. São os brinquedos que marcaram época”.
Ao contrário da maioria dos documentários, que costuma ser sérios, esse é pura diversão e repleto de piadas. No episódio sobre Jornada nas Estrelas, por exemplo, o locutor o tempo todo faz chistes comparando os erros nos bonecos da série com o sucesso de Star Wars.
E não pensem que o tema são apenas os brinquedos. Essa indústria está diretamente ligada às séries de TV, filmes e, principalmente, quadrinhos. Um exemplo: a história por trás dos Transformers e até o nome dos personagens surgiu nos quadrinhos da Marvel. Antes eram apenas robôs japoneses que se transformavam em coisas.
Aliás, tudo está entranhado: os japoneses licenciaram o Falcon, mas perceberam que vender soldados americanos para os japoneses não era uma boa ideia, então o transformaram em robôs. Com a crise do petróleo, o valor do plástico se tornou proibitivo, então foi necessário fazer bonecos menores e, assim, surgiram os microman, que nos EUA ficaram conhecidos como micronautas... que se transformaram em quadrinhos da Marvel. Vê? Tudo está entranhado.
The Toys tem três temporadas, cada uma com quatro episódios. Todos são interessantes, mas alguns merecem destaque: Star Wars, He-man, GI-Joe, Jornada nas Estrelas, Transformers e Tartarugas Ninjas. Esses últimos, inclusive surgiram em quadrinhos autorais e, surpreendentemente, se tornaram alguns dos bonecos mais vendidos de todos os tempos.
Como diz a abertura: “Plástico em criações que duram gerações e ainda não nos esquecemos”. 

quinta-feira, março 30, 2023

Joyland, de Stephen King

 


Stephen King é mais conhecido pelos livros de terror. Entretanto, alguns dos melhores momentos dele foram em textos que pouco tinham do gênero, a exemplo da noveleta O corpo (que deu origem ao filme Conta comigo) ou o romance O corredor da morte (que deu origem ao filme À espera de um milagre). Em Joyland, King mostra que pode ser um mestre em outra modalidade: o policial.
A história se passa em um parque de diversões (o Joyland do título) assombrado por um assassinato: uma garota foi degolada no meio de um brinquedo (conhecido no Brasil como trem fantasma). O assassino nunca foi pego e tudo leva a crer que ele matou outras garotas. A moça assassinada aparece de tempos em tempos para trabalhadores do parque, pedindo ajuda.
O personagem principal é um jovem universitário que acabou de ser chutado pela namorada e aceita um trabalho provisório no parque. Juntam-se a ele dois outros estudantes: uma linda garota ruiva e seu namorado fortão e simpático.
Como o leitor certamente adivinhou, a trama gira em torno da tentativa de se descobrir quem é o assassino (e, numa óbvia contribuição Kingiana, acrescenta-se um garoto doente com dom mediúnico). Mas esse não é o forte de Joyland (embora providencie um final realmente eletrizante). O forte do livro é aquilo que King faz melhor: mostrar personagens cativantes em uma narrativa saudosista. O capítulo em que o garoto doente é levado para passear no parque é um dos pontos altos da obra – algo que só King, com sua narrativa rica e extremamente coloquial conseguiria fazer.
O livro emula os pulp fictions não só na trama, mas também na capa, com o título em fonte vintage, mostrando uma garota Hollywood com sua máquina fotográfica na mão olhando apavorada para alguém que se aproxima, tendo o parque de diversões ao fundo.
Esse estilo saudosista é bem resumido no trecho: “Essas são coisas que aconteceram há muito tempo, em um ano mágico em que o petróleo era vendido por onze dólares o barril. O ano em que meu coração foi partido. O ano em que perdi a virgindidade. O ano em que salvei uma linda garotinha de se engasgar e um velho bem cruel de um ataque cardíaco (...) Também foi o ano em que aprendi a usar uma língua secreta e a dançar o Pop Pop com uma fantasia de cachorro. O ano em que descobri que há coisas piores que perder uma garota”.
Surpreendentemente para King, o livro tem exatas 239 páginas, o que permite ler de uma sentada. 

A loucura dos quadrinhos

 

Em 1985, quando a Marvel lançou uma minissérie do personagem Longshot, o que chamou atenção não foi tanto o personagem, mas estilo detalhista de seu desenhista, Arthur Adams. Embora não tivesse pique para uma série mensal, Adams acabou deixando sua marca nos quadrinhos, influenciando toda uma nova geração. Seu arte-finalista era Whilce Portacio, que fora colocado na série exatamente para aprender com Adams. Acabada a mini, Portacio foi colocado no título Tropa Alfa, com desenhos do sul-coreano Jim Lee. Os dois se tornaram amigos e definiram um estilo que marcaria os anos 1990.
Enquanto isso, um ex-jogador de beisebol, Todd McFarlane, estava se sentindo insatisfeito com o título do Hulk. Seu editor levou amostras de sua arte para outros editores da Marvel. Sua anatomia distorcida e fetiche por detalhes fizeram com ele ganhasse o título do Homem-aranha.
McFarlane, Lee e Portacio tinham um estilo que destoava completamente do estilo sóbrio e funcional de artistas que haviam feito escola na editora, como John Byrne e se aproximava mais da linguagem de vídeo-clipes e a não-linearidade narrativa.
Em 1989 McFarlane decidiu que queria escrever e desenhar seu próprio título. Achou que o editor lhe daria um título menor, mas se surpreendeu ao descobrir que seria o responsável por um novo título do aracnídeo. Ele mesmo dizia que não era roteirista. Do jornal, só lia o caderno de esportes e nem se lembrava do último livro que tivera em mãos.
Enquanto esperava seu próprio título estrear, McFarlane resolveu ajudar outro novo talento a arte-finalizar as capas de Novos Mutantes: Rob Liefield. Liefield era ainda mais trôpego na arte da narrativa. Seus músculos e artilharia eram absurdos. Cenários de fundo desapareciam e reapareciam, Janelas quadradas logo reapareciam redondas. Segundo sua editora Louise Simonson, ele simplesmente não ligava para o roteiro, fazendo desenhos de gente cool pousando de uniforme para depois vender as páginas por uma boa grana. Ainda assim, as vendas subiam.
Para o lançamento do Homem-aranha, os executivos adotaram uma estratégia que seria a melhor representação da era que se iniciava: colocar a revista dentro de um saquinho plástico. O saco destacava a revista no ponto de venda e fazia com os colecionadores comprassem duas edições, uma para guardar fechada e outra para abrir e ler. Também havia duas capas, uma com tinta normal e outra com tinta prateada, o que levava os colecionadores a comprarem a mesma revista três vezes. Como resultado, a revista vendeu mais de um milhão de exemplares.
Novos artistas escrevendo e desenhando em um estilo pouco narrativo, mas chamativo, capas alternativas e saquinhos pareciam ser a nova moda. Logo viria X-men 1, de Portacio e Lee. A revista tinha diálogos de Chris Claremont e depois de John Byrne (ambos não aguentaram ter de colocar textos em páginas que iam chegando aos poucos e pareciam não fazer sentindo). Vendeu mais que o Homem-aranha de McFarlane. A revista teve cinco capas variantes, fazendo com que os colecionadores comprassem seis vezes a mesma revista – uma para tirar do saco e ler e cinco para guardar na coleção.
Nesse mesmo período a DC decidiu, numa jogada de marketing, matar o Super-homem, o que gerou muitas matérias em jornais e revistas. E as matérias sempre traziam informações sobre pessoas que haviam comprado a Action Comics número 1 por centavos e que agora essas revistas valiam o suficiente para serem trocadas por uma mansão. Então aquele motorista de caminhão que nunca havia lido quadrinhos achou que tinha achado sua mina de ouro: bastava comprar uma daquelas revistas número 1 (talvez X-men de Lee e Portacio ou o Homem-aranha de McFarlane) e guardá-la, esperando que valorizasse o suficiente para garantir a faculdade dos filhos.
Agora já não eram mais só os fãs que compravam. Pessoas que nunca haviam lido quadrinhos compravam caixas de gibis e guardavam. Se o gibi tinha cinco capas variantes, compravam cinco caixas de gibis e guardavam, esperando valorizar. As vendas batiam a casa dos milhões, um número muito superior ao número real de fãs de quadrinhos nos EUA.
Claro, esse era um sistema que tinha tudo para implodir. Logo ia chegar um ponto em que todos (lojistas, especuladores e fãs de quadrinhos) iriam perceber que aquelas revistas nunca se valorizariam tanto – principalmente por um fator simples de economia: se algo existe em grande quantidade, não tem valor (Um ótimo exemplo disso é a edição nacional da morte do super-homem, que hoje pode ser facilmente encontrada em qualquer sebo por preços que variam de 3 a 5 reais, um valor inferior ao que seria o preço de banca se a revista fosse lançada hoje).
Mas antes que a bolha explodisse, a indústria de quadrinhos viu nascer a era Image.

Marketing: comportamento do consumidor

 

O comportamento do consumidor é influenciado por vários fatores. Alguns deles são controlados pela empresa e podem ser resumidos nos 4 Ps: produto, preço, ponto de venda e promoção. Uma loja pode fazer o consumidor comprar mais baixando seus preços. Um produto pode aumentar suas vendas aumentando a distribuição. Mas existem outros fatores, que não são controlados pela empresa, mas podem fazer grande diferença. São as chamadas variáveis incontroláveis.
Uma dessas variáveis são as condições ambientais. Chuva, seca, frio, calor fazem o consumidor mudar de comportamento. Se chove demais, ele tende a comprar guarda-chuvas, capas. Se faz sol, compra protetor solar e óculos escuros. Os vendedores ambulantes já perceberam essa verdade: quando o tempo muda, eles mudam seus produtos. A mesma pessoa que ontem estava vendendo óculos escuros, hoje está anunciando sombrinhas. Acompanhar as tendências ambientais é importante até mesmo para uma loja de roupas. Num ano em que o inverno vai ser menos frio, é bom comprar pouca roupa de frio para não ficar com produto encalhado no estoque.
As variáveis tecnológicas também são essenciais. Afinal, inovações tecnológicas podem acabar com mercados. A invenção do mp3, por exemplo, está matando o mercado de CDs. Em alguns países, as empresas já estão ganhando mais com a venda de música por celular do que a venda de CDs. Da mesma forma, o surgimento dos computadores pessoais matou o mercado para máquinas de escrever. Em 2009, a Kodak cancelou a venda de filmes fotográficos Kodachrome por causa da concorrência das câmeras digitais.
A importância da variável tecnológica é facilmente percebida pelos gerentes das concessionárias de automóveis. No final do ano a maioria dos clientes simplesmente para de comprar para esperar o modelo do ano seguinte, com mais tecnologia. Por isso são tão comuns as promoções de final de ano.
Entre as variáveis econômicas, as que mais influenciam no comportamento do consumidor são a inflação, a facilidade de créditos e os juros. Na época em que o Brasil tinha inflação de três dígitos ao ano, os consumidores faziam compras enormes, para o mês todo, no mesmo dia em que recebia o pagamento. Hoje, com a inflação controlada, os consumidores fazem compras semanais. Isso aliou-se a um outro fator: a facilidade de crédito. Hoje é muito fácil conseguir um cartão de crédito ou conseguir crédito em uma loja, o que tem estimulado o consumo. Outro fator que estimula o consumo são os juros baixos, pois mais pessoas se sentem estimuladas a pegar dinheiro emprestado e gastar.
Da mesma forma que a economia, as questões políticas também influenciam. Um governo ecológico, por exemplo, irá estimular a compra de produtos orgânicos e naturais.
A importância da variável política foi sentida em 2003, quando os EUA invadiram o Iraque. O forte sentimento antiamericano fez com que o McDonald’s tivesse prejuízo pela primeira vez em sua história. Outro produto tipicamente norte-americano, a Coca-Cola, também sofreu com boicotes em vários países. Na França e na Alemanha, muitos restaurantes se recusavam a vender esse famoso refrigerante. Mesmo no Brasil esse fato político teve consequências. Estudantes invadiram lojas do McDonald’s com cachos de bananas tentando convencer as pessoas a pararem de consumir sanduíches e comerem algo mais saudável.
Os fatores legais também influenciam no comportamento do consumidor, embora nem sempre como os legisladores esperam. A lei seca nos EUA fez aumentar o consumo de bebidas alcoólicas e turbinou as atividades da máfia. O livro Versos Satânicos, proibido no mundo muçulmano, tornou-se um best seller mundial.
Em 2008, as autoridades iranianas proibiram a venda da boneca Barbie, vista como símbolo de valores ocidentais, naquele país. Embora a medida tenha de fato impedido a venda da boneca em lojas, ela também fez aumentar em muito o contrabando.
Outro fator relevante, de grande influência no comportamento do consumidor, são os meios de comunicação de massa. Novelas, filmes e histórias em quadrinhos ditam o consumo. Basta uma atriz global aparecer usando um brinco na novela que no dia seguinte o acessório vira o mais procurado nas lojas. As cabeleireiras sabem muito bem disso, pois costumam ter em seus salões revistas com fotos de famosas para que suas clientes escolham os cortes de acordo com a nova moda da TV.
Muitas empresas aproveitam essa força dos meios de comunicação de massa e dão um jeito de colocar seus produtos em novelas e filmes. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Azaléia, que firmou um contrato com a Globo para que as atrizes usassem suas sandálias nas novelas.

 Um exemplo clássico foi o personagem Popeye, que fez aumentar em muito o consumo de espinafre nos EUA. A importância do personagem para as vendas desse vegetal foi tão grande que os produtores ergueram duas estátuas para o Popeye: uma em Crystal City, no Texas, e outra em Alma, no Arkansas.

Outro fator importante, que deve ser levado em consideração, é a religião. Sabe-se que líderes religiosos costumam direcionar o comportamento de seus fiéis, inclusive em termos de consumo, e as empresas precisam se adaptar a isso. É famoso o caso do McDonald’s que, na Índia, teve de criar um sanduíche sem carne para se adaptar aos hábitos vegetarianos pregados pela maioria das religiões indianas. No Brasil, um caso emblemático foi a campanha da Antarctica “Do jeito que o diabo gosta”, que precisou ser mudada para “Do jeito que a gente gosta” por causa do aspecto religioso. 

Mosaico de Ravena - Matintaperera

 

Se eu pudesse indicar uma trilha sonora para meu livro Cabanagem, seria a obra do maestro paraense Waldemar Henrique. O maestro revolucionou a música clássica brasileira ao trazer para ela batidas e temas populares. Várias de suas músicas falavam de mitos amazônicos: Boto, Curupira, Matinta Pereira, Jurupari. Mas ele não dava um tom infantil a essas
lendas. Ao contrário: suas músicas eram sombrias como as matas amazônicas e o
melhor exemplo desse clima é Matinta:

Matinta Perera chegou clareira
e logo silvou
no fundo do quarto Manduca Torquato
de medo gelou
Matinta quer fumo
quer fumo migado
meloso melado
que dê muito sumo
Torquato não pita não masca nem cheira
Matinta Perera vai tê-la bonita
Matinta Perera de tardinha vem buscar
o tabaco que ontem a noite eu prometi
Queria Deus ela não venha me agoirar
Queria Deus ela não venha me agoirar
ah!

Matinta, preta velha mãe maluca, pé de pato
Queira Deus ela não venha me agoirar
Matinta Perera chegou na clareira
e logo silvou
no fundo do quarto manduca torquato
de medo gelou
que noite infernal

De todas as versões dessa música, a que melhor
encarnou esse clima de conto de terror foi feita pelo grupo paraense Mosaico
de, a começar pelo grito aterrorizante da Matinta. 


Para comprar meu livro Cabanagem, clique aqui.

Ken Parker – os pioneiros

 


 



Algumas histórias de Ken Parker poderiam facilmente serem adaptadas para o cinema – e com certeza dariam bons filmes.

O episódio Os pioneiros, número 53 da série, é um exemplo. A história tinha toda a estrutura para se transformar num bom filme.

A trama começa com Ken Parker salvando um fazendeiro no meio de uma tempestade areia. O homem havia tentando ir para a cidade chamar um médico para o filho, que arde em febre. Pioneiro da região, ele viu o rio secar e toda a sua fazenda se transformar num verdadeiro deserto.

Trevisan dominava perfeitamente a narrativa visual. 


Essa história tem um enredo muito parecido com o de um filme famoso, Os brutos também amam: um desconhecido chega a uma fazenda com sérios problemas, passa a ser idolatrado pelo filho do casal e desperta a paixão da esposa do fazendeiro.

Mas Giancarlo Berardi traz questões e dilemas que vão muito além de Os brutos também amam. Uma das mais interessantes é caracterizar o fazendeiro como um pacifista, que jogou fora a única arma que tinha em casa. A trama toda gira em torno desse dilema: pode alguém pacifista continuar íntegro no meio de um ambiente bruto como o velho oeste?

A sequência em que Parker ensina o garoto a caçar é memorável.


A edição traz momentos memoráveis: Ken Parker ensinando o menino a caçar; a esposa enlouquecida com a morte do filho mais novo; a própria tempestade de areia. Essas sequências são destacadas pelo ótimo desenho de Trevisan, com traços soltos e rápidos e ótima narrativa visual. 

Curupira

 



Nunca acreditei em elementais. Só mudei de opinião quando visitei uma cidade da ilha de Marajó chamada Muaná.

            Fui com a minha namorada na época e atual esposa. Talvez caiba aqui uma palavrinha sobre o modo de vida na ilha de Marajó. O que mais salta aos olhos é a importância do rio. Para as pessoas que moram no interior, o rio é tudo: de fonte de alimentos a rua. Sim, rua! Para se ir à casa do vizinho, não se vai por terra, mas pela água. Hoje todos têm voadeira ou rabeta. Mas na época que se passa a história, todos usavam uma canoazinha inconstante, que alguns chamam montaria ou cascinho.

Todos fazem suas casas na beira da água. Minha esposa me contou que certa vez sua mãe brigou com uma vizinha que morava do outro lado do rio. As duas postaram-se na ponta do trapiche e ficaram lá, gritando impropérios uma para a outra. Para nós, seria como ter uma discussão com um vizinho que mora a duas ruas de distância sem sair de casa.

            Usando um casquinho, no qual eu quase nunca conseguia me equilibrar, visitamos vários locais e conhecemos a região próxima ao rio. Mas tinha ganas mesmo era de andar no meio da floresta. Afinal, eu já estava mais do que acostumado a fazê-lo na mata do Utinga, em Belém. Assim, munido de um facão, entrei na floresta.

            Meu objetivo era encontrar um pé de fruta (não me lembro realmente qual) que havíamos avistado à beira de uma baixinha. Baixinha é como os caboclos chamam os pequenos riachos criados pela cheia do rio. Verdadeiras veias que serpenteiam toda a mata, transformando-se em valas de lodo quando a maré está baixa.

            Não houve qualquer problema na ida, embora eu fosse obrigado a atravessar uma parte bem densa da floresta e não tivesse comigo uma bússula. Cheguei exatamente onde queria, o que não surpreende, pois eu estava acostumado a andar na mata e sempre o fiz usando apenas o sol, a beira do rio e as trilhas existentes para me orientar.

            Infelizmente, o cacho estava vazio. Algum animal se antecipara a mim na colheita das frutinhas. Era retornar.

            Quando voltava, comecei a ouvir passos atrás de mim. Quem quer que fosse, andava quando eu andava e parava quando eu parava. Intrigado, dei o grito característico que os caboclos usam para se cumprimentarem. Uma mistura de O com U muito agudo e forte. Pode parecer pouco elegante, mas no meio da mata é a melhor maneira de se ter certeza de que o outro ouvirá. Mas naquela ocasião, meus cumprimentos não foram respondidos.

            Tentei novamente, ainda mais forte. Nada.

            Continuei andando, e os passos atrás de mim. Era bem audíveis. Não se tratava, por exemplo, de uma ilusão auditiva provocada pelo vento nas folhas ou pelos galhos caídos. Não mesmo. Podia ouvir perfeitamente os passos atrás de mim: poc poc poc... de vez em quando, podia perceber uma madeira estalando, sinal claro de que alguém a pisara.

Parei novamente... e repeti o cumprimento. Nenhuma resposta. Comecei a pensar, então, que poderia ser um porco. Os marajoaras têm o costume de criar seus porcos soltos pela floresta. Todo dia, no final da tarde, os suínos se reúnem para receber comida de seu dono, mas passam a maior parte do dia na floresta, devorando coquinhos. De vez em quando um deles se torna selvagem, dando ensejo para uma caçada com espingardas pica-pau.

Certo de que era um porco, pus-me a chamá-lo. Coisa curiosa são as formas que o pessoal do interior usa para chamar porcos. Cada região tem uma. Na ilha de Marajó, chama-se assim: cheine, cheine, cheine... pode parecer nome de cowboy, mas funciona. Comigo, no entanto, não deu certo. Não era um porco.

Enquanto chamava o porco, parei numa clareira com uma mangueira muito grande. Continuei andando. Pelos meus cálculos, já devia estar perto da casa e logo acabaria me livrando do meu perseguidor. Para minha surpresa, não só não encontrei a casa, como voltei para o mesmo ponto: a clareira com a mangueira! Fiquei apavorado. Eu nunca havia andado em círculos em todos os anos de experiência na floresta! Além disso, para fazê-lo, eu precisaria estar caminhando há horas. Eu havia voltado para o mesmo ponto em poucos minutos! Para quem achava que estava indo em linha reta, era uma constatação assustadora.

Lembrei imediatamente da lenda do curupira. Para os que não a conhecem, o curupira é um menino de cabelos de fogo e pés voltados para trás. Trata-se de um elemental da floresta, que faz com que se percam caçadores e pessoas mal-intencionadas (na verdade, eu descobri depois que qualquer um que entra na mata sem pedir permissão é considerado mal-intencionado). O curupira tem também o poder de ilusão. Há uma história sobre um caçador que sempre matava mais animais do que precisava, desrepeitando a natureza. Para castigá-lo, o curupira fez com que ele, vendo sua mulher, pensasse que se tratava de um bicho. Resultado: o caçador fez fogo e acabou matando a própria esposa...

Todas essas histórias me vieram à mente naquele momento. Então fiz a única coisa que não poderia ter feito: saí correndo pela mata. Quando dei por mim, estava completamente perdido. Os passos já não me seguiam mais.

            A mata da região tinha uma característica que dificultava em muito as coisas para mim. O chão era, na maior parte, elameado. Nada de terra firme, na qual acabam se formando trilhas nos locais por onde as pessoas passam com mais freqüência. Em certo ponto, precisei atravessar uma baixinha que estava aparentemente seca. Quando dei o primeiro passo, afundei até quase a cintura. A lama era tão espessa que agarrava meu tênis, tirando-o do pé. Isso me atrasava, pois eu tinha de voltar para pegá-lo. Andar sem tênis, nem pensar.

            Já em terra firme, pensei em seguir uma baixinha, mas eu sempre as encontrava pelo meio e, como ainda não começara a cheia, não sabia para que lado ficava o rio. Outro problema é que, em certas regiões mais estreitas da ilha, as baixinhas poderiam até varar de um lado a outro.

            O jeito era gritar e andar. Fiz isso até que ficasse rouco e meus pés já não me agüentassem em pé. O pior de tudo é que o dia já ia terminando. A perspectiva de passar a noite na floresta sozinho, enlameado, sem fogo, e apenas com um facão era assustadora demais para ser sequer cogitada. Eu não iria querer isso nem para o meu pior inimigo. A floresta de dia é uma espécie de paraíso silvestre, um local onde reencontramos nossa essência, um local em que entramos em contato com a natureza no seu estado mais puro... mas a floresta de noite é um inferno capaz de fazer Rousseau mudar de idéia e ansiar desesperadamente para o conforto de uma casa com todas as comodidades modernas. Há os insetos. Todos eles saem de noite para se alimentar do primeiro bobalhão com a pele descoberta que puderem encontrar. E existem insetos que nem merece esse nome, pois são enormes, verdadeiros monstros. Além deles, todos os animais carnívoros saem de noite para caçar. E havia também aquilo que não podia ser nomeado, as criaturas da noite, que não existem para a nossa realidade cartesiana, mas são perigosamente reais quando o manto negro cai sobre as árvores. E, quando se está na floresta, a noite cai de repente, sem qualquer aviso. Num momento é dia e no outro é a mais negra noite.

            Estava já quase desistindo e me conformando com minha má sorte quando ouvi vozes. Vozes humanas. Comecei a gritar para chamar a atenção de quem quer que fosse, enquanto me aproximava da origem do som. Então percebi que as pessoas estavam do outro lado de uma baixinha. Uma, aliás, que nem merecia esse nome: era enorme.

            Impossível de atravessar como eu fizera com a outra. Comecei a percorrer a beira até encontrar uma árvore caída que servia de ponte. Quase caí, mas cheguei do outro lado. Depois de muita procura, encontrei um casal de caboclos com filhinha. Contei para eles minha história.

            - Nós estamos indo catar açaí. – informou o homem. Espere aqui, que depois a gente te leva pra casa.

            Sentei numa árvore caída e esperei. Esperei. Esperei e esperei. O tempo passou e nada deles aparecerem. Uma idéia idiota, aterrorizante, passou por minha mente: e se não existissem nem o homem, nem a mulher, nem a criança? E se fosse tudo uma ilusão provocada pelo curupira?

            O tempo passava e eu me sentia cada vez mais angustiado. O pensamento terrível aparecia de tempos em tempos, mas eu o afastava, como quem espanta um mosquito.

Finalmente, ouvi barulho de vozes. Os três apareceram, trazendo cachos de açaí. Enquanto me levavam para sua casa, eles me informaram que eu havia atravessado de um lado a outro da ilha. Também disseram que, pelo caminho que ia, acabaria chegando no mangue e, provavelmente, seria obrigado a passar a noite lá.

            - O mangue é um lugar terrível para se andar. – comentou o homem.

            Realmente, além do solo enlameado, essa região tem uma vegetação característica, composta de capim navalha (que corta a pele ao menor contato) e plantas espinhosas.

            No final, voltamos para a casa do meu sogro da maneira mais rápida: de canoa. A maré estava cheia, o que nos permitiu atravessar por uma baixinha que ia de um lado a outro da ilha. Caso contrário, teríamos que contornar a ilha, o que levaria horas.

            Quando contei o que me acontecera, meu sogro não só não duvidou de minha palavra, como ainda aconselhou:

            - Não se entra na mata sem pedir permissão.

(Ilustração do amigo Romahs)