sexta-feira, fevereiro 23, 2024

Os marcianos estão chegando

 

Doutor Flávio era uma figura imponente. Do alto de seus um metro e sessenta, entrava nos locais batendo os pés, peito estufado, como um rei que desfila entre súditos. E  à primeira oportunidade anunciava:
- Sou doutor!
Certa vez precisou ir ao médico e lá entrou, altivo, e anunciou:
- Sou doutor!
A recepcionista abaixou os óculos, consultou a agenda, e informou:
- O doutor já vai atendê-lo.
Mas como? Que desrespeito! Que afronta! Chamar o médico de doutor, sendo que doutor era ele!
Nem mesmo se consultou. A doença haveria de se curar sozinha.
Foi direto para o escritório de um advogado. Ia processar o médico. Ora essa: doutor era ele!
Na recepção perguntaram-lhe o nome e do que se tratava, ao que ele respondeu com um:
- Sou doutor!
O rapaz da recepção desculpou-se:
- O doutor advogado está atendendo um cliente, mas já vai recebê-lo.
Foi embora furibundo!  Que maçada! Doutor era ele!
Apesar disso, vivia bem, feliz, e, de tempos em tempos recebia em sua casa seus únicos três amigos. Recebia-as com seu cumprimento familiar:
- Sou doutor!
Mas um dia essa vida pacata e feliz foi abalada por uma notícia terrível: um de seus amigos passara no doutorado!
Era incompreensível essa traição. “De nihilo nihil”, pensou ele, coçando os já ralos cabelos e repuxando a barba grande e grisalha. O que significava aquilo?
Aquela notícia foi sucedida por outra, ainda pior, ainda mais terrível: o segundo amigo agora também estava fazendo doutorado. “Aetatem habet, ipse sibi consulte expertus”, pensou ele, tentando a todo custo desvendar o que significava aquele emaranhado de más notícias: “Mala ultro adsunt”.
Então, quando a terceira má notícia rebentou, ele já mal conseguia dormir à noite: o terceiro amigo também estava no doutorado!
Como era possível? Traição! “Traição...”, lembrou-se o doutor “vem de traditio. Traditio, passar a diante...” mas, claro, porque não pensara nisso antes? Quando estava tudo claro! Agora tudo fazia sentido! “Qui nimium properat serius absolvit”!
Só havia uma explicação possível: o orientador de seu primeiro amigo só poderia ser um marciano! Marciano é um habitante de Marte, o deus da guerra, que viera colocar cizânia onde antes havia amizade.
Só podia ser um marciano. Mas se ele era um marciano, o orientador do segundo também só podia ser um marciano e também o orientador do terceiro!
Mas isso levava a uma conclusão ainda mais terrível. Se os três eram marcianos, também seus orientandos só podiam ser marcianos! Era essa ligação entre esses seis marcianos! “Veritatis simplex oratio”!
O Doutor achou que era sua obrigação alertar a sociedade e foi para a rua.
Ficava nos sinais, avisando a todos sobre os marcianos que estavam dominando a sociedade. Em pouco tempo os marcianos iam acabar com a liberdade e as pessoas iam ter que comer até seus cachorros. 
- Seu maluco, sai da rua! – gritaram de dentro de um carro que quase o atropelou.
- Alea jacta est! – retrucou ele.
Mas não adiantava alertar os outros se ele mesmo estava exposto. Era preciso fazer uma limpeza em casa. Assim, passou dois dias olhando atrás dos móveis procurando algum marciano que estivesse escondido. Felizmente não encontrou nenhum, mas nunca se sabia onde poderia estar um marciano.  
- Optima citissime pereunt. – repetia, a cada cômodo vistoriado.
E havia algo mais grave, um perigo ainda maior: os vizinhos! Quantos deles seriam marcianos?
O Doutor comprou um binóculo e passou a espionar os vizinhos. Qualquer comportamento estranho poderia ser um indício. “Indício, do latim inditium, Amat victoria curam”, raciocinou ele.
E a realidade era assustadora! Um dos vizinhos comia cereal de bolinhas! O outro usava camisa amarela! O outro usava chinelos para tomar banho!
“Abusus non est usus, sed corruptela”, pensou ele “estou cercado de marcianos! Eles estão por todos os lados! Hic tua mercatur quia a te saepe precatur!”.
Quantas outras pessoas estariam envolvidas? Talvez o rapaz do mercadinho fosse um deles e estivesse tentando envenená-lo, o que explicaria a diarreia que tivera na semana passada: “Mammas atque tatas nimium conducit habere”.
A partir deste dia, ficou trancado em casa, vigiando a rua pela janela. Comia o que tinha e bebia água da torneira. Dormia apenas o suficiente e voltava para a janela, um revólver a postos na mão direita. Ninguém ia tirar sua liberdade!!!!
Uma noite eles vieram.
O disco voador pousou na frente de sua casa e de dentro dele saíram pequenos seres verdes vestidos de branco. Tinham bocas grandes, brancas e se comunicavam através de sons estranhos, que ele não conseguia identificar.
Não esperou que se aproximassem e atirou.
Quase acertou um deles e os marcianos se esconderam atrás do disco voador. Logo apareceu outro disco voador e outro.
O Doutor atirou neles, mas quando suas balas acabaram, eles invadiram sua casa e o levaram. Colocaram-no na nave espacial e levantaram vôo. Que tipo de torturas terríveis esperavam por ele em Marte? Audaces fortuna juvat, timidosque repellit!
...
No dia seguinte, a rua acordou alvoroçada com a novidade. Entre as mais excitadas estavam duas velhinhas:
- Amiga, eu vi tudo! Ontem levaram o Doutor Flávio!
- Levaram? Quem levou?
- Os enfermeiros do hospício!
- Eu bem vi que ele andava estranho. Nem saía de casa. Da última vez que o vi ele veio me falar de marcianos...
- Ele atirou nos enfermeiros e tiveram que chamar a polícia.
- Coitado. Parecia uma pessoa tão ajuizada... professor... só tinha aquela mania estranha de obrigar todos a chamarem ele de doutor...
- E de falar aquelas frases estranhas em latim...  
- Estudou muito, amiga. Estudou muito e deu nisso... 

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