Quando eu estava no primário, li um
livro que me fascinou. Era um trabalho de escola e cada um era sorteado para
ler um capítulo em uma aula. Na primeira aula o sorteado admitiu que não tinha
lido nada e, portanto, não se sentia capaz de ler para a turma. A professora
perguntou se alguém já tinha lido. Silêncio total. Eu levantei a mão. “Você já
leu o livro todos?”. “Duas vezes”, respondi. Depois li tantas vezes que decorei
a ponto dos colegas me testarem. Liam um trecho e eu dizia em qual página
estava.
O nome desse livro era Aventuras de
Xisto, de Lúcia Machado de Almeida, publicado na coleção Vaga Lume.
Além do texto maravilhoso da autora,
o livro se destaca pelo trabalho primiroso do ilustrador Mário Cafiero, cujo
talento para a fantasia já se revela logo na capa, com o protagonista montado
em um cavalo, a espada levantada. O meticuloso trabalho do artista, desenhando
cada folhinha nas árvores e cada grama no chão, impressiona. Mas esse
detalhismo não está a serviço do realismo. Ela contribui muito mais para tornar
a imagem irreal, como num sonho, o que é ampliado pelo fato da proporção entre
cavalo e cavaleiro ser estranha, incluindo uma cabeça de cavalo pequena na proporção
com o corpo. Essa característica se repete ao longo das ilustrações internas
com os bruxos, por exemplo, sendo mostrandos com uma proporção excessivamente
alongada (com nove cabeças).
Tudo isso contribui em muito para o
clima de fantasia da obra.
O texto de Lúcia Machado de Almeida é
singelo e inventivo. Parece simples, mas é cheio de estratégias narrativas, a exemplo
da abertura do livro. A autora narra o nascimento no qual o personagem olhou
para a mãe e sorriu. E depois:
“Passava o tempo... Quando Xisto fez
três anos, morreu-lhe o pai. Aos cinco, teve sarampo, e aos nove ficou de
castigo por ter pregado um susto no mestre, que por pouco não endoideceu”.
Misturar em um único parágrafo vários
fatos dá a impressão de que esses fatos aconteceram muito rápido. E misturar em
uma mesma frase um evento importante, como sarampo e o castigo, dá a dimensão
de importância desse último fato ao mesmo tempo em que a história, contada em
seguida, destaca a inteligência do personagem.
Na trama, Xisto vê um feiticeiro
esconder na parede falsa do fundo de uma gruta um objeto. Ao abrir o local,
eles descobre o MANUAL DO SEGREDO DOS BRUXOS.
O manual lista os quatro bruxos ainda
existentes no mundo e o ponto fraco de cada um, além de nomear cada um deles de
acordo com seus atributos:
Fredegonda – senhora dos que voam,
mas não são aves;
Jacomino – o que se alimenta do humo
da terra;
Minhoco – o senhor do tempo;
Durga – o que vê sem ser vito.
Como se percebe, a lista só amplia o
mistério graças ao texto misterioso (o que seria alguém que vê sem ser visto?),
estimulando o leitor a imaginar quais os poderes dessas pessoas.
Para eliminar esses últimos bruxos,
Xisto torna-se um cavaleiro andante, acompanhado de seu amigo Bruzo, tão simplório
quanto Xisto é inteligente.
Nessa jornada eles ainda enfrentam
tiranos. Há tempo até para situações de humor quixotesco, como quando eles
acreditam que bruxos estão executando pessoas e acabam descobrindo que são
fazendeiros pegando uma galinha para o jantar.
Em suma, um livro mágico, que encantou
toda uma geração e abriu as portas para a predileção pela literatura de
fantasia.
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