Philip K. Dick é um dos mais importantes e disruptivos autores de ficção científica de todos os tempos. Seus textos transgressores colocavam em dúvida a nossa noção de realidade e até as verdades mais arraigadas. Eram textos perturbadores.
A série Eletric Dreams, disponível no Brasil pela Amazon Video adapta dez contos do autor em episódios que vão do brilhante ao confuso, mas na média respeitam a obra do grande autor norte-americano, sendo igualmente perturbadores.
Abaixo relaciono os episódios, do melhor ao pior.
Real Life
Na história, uma policial do futuro se sente culpada pela morte dos colegas. Por sugestão da esposa, ela embarca numa viagem virtual que deveriam ser de férias. Nessa nova realidade, ela é o presidente de uma empresa de realidade virtual que perdeu a esposa recentemente. A situação se complica quando a protagonista (ou o protagonista) não consegue mais identificar qual realidade é falsa e qual é verdadeira. Da mesma forma, o próprio expectador não consegue fazer essa distinção. É o episódio que melhor lida com os temas mais caros a Philip K. Dick.
Human is
Uma cientista vive uma relação abusiva com o marido, que parte em uma missão espacial para um planeta distante, onde deve conseguir uma substância essencial para a sobrevivência da humanidade, já que o ar se tornou rafefeito. Mas o planeta é defendido por agressivos seres extraterrestres. Quando volta, no entanto, ele parece diferente, surpreendentemente afetuoso. É o episódio que melhor discute a questão da humanidade, também presente na obra de Dick. Uma curiosidade é que, embora a Amazon não tenha traduzido, o título em português seria muito mais interessante por sua dupla interpretação: “Ser humano”.
Kill all others
O episódio se passa num futuro em que todos os aparelhos da casa são acionados por comando de voz (o que parecia ficção científica, hoje, surpreendentemente, é realidade) e anúncios holográficos são invasivos a ponto de aparecer para as pessoas até mesmo no banheiro. Philbert Noyce é um operário dividido entre uma rotina tediosa e a esposa, que parece estar apaixonada por um anúncio. Só essa premissa já tornaria o episódio interessante. Mas a trama se torna ainda mais pulgente quando Noyce assiste à entrevista da única candidata à presidência e fica estarrecido quando ela diz: “Mate todos os outros”. Surpreendentemente, ninguém mais parece se preocupar com essa fala, nem mesmo jornalistas ou colegas de trabalho. Teria ele ouvido mesmo a frase? O episódio se destaca tanto por abordar temas caros a Philip K. Dick como por refletir sobre como a comunicação digital pode contribuir para uma distopia.
The Hood Maker
Num futuro incerto, mutantes telepatas são a principal forma de comunicação a longa distância. Mas surge um movimento de resistência, que considera os telepatas uma forma de invasão à privacidade. Soma-se a isso um enorme preconceito contra telepatas, facilmente reconhecíveis por uma marcar no rosto.
The Commuter
Mais um episódio que lida com a noção de realidade. Na história, um pacato funcionário de uma estação ferroviária vive um drama: seu filho sofre de problemas psiquiátricos e tem surtos de violência. Em meio à rotina e à tragédia, ele conhece uma mulher que quer comprar uma passagem para um local que não existe. Seguindo as pistas, descobre que é possível descer do trem em uma estação inexistente e, uma vez ali, realizar seus maiores desejos. O grande problema é que para ter essa vida de sonhos, ele precisará sacrificar alguém próximo. É um episódio muito bem dirigido e comovente.
Safe And Sound
Mais uma história de Dick que lida com a vigilância como forma de controle social. Na história, vários atentados fizeram com que se criasse um estado policial em que estudantes são monitorados o tempo todo por pulseiras. Uma garota chega com sua mãe vinda de uma comunidade sem tecnologia de vigilância, que ainda resiste. Os problemas começam quando a garota tenta se encaixar nesse mundo tecnológico, comprando uma pulseira de vigilância (ela traz também diversos aplicativos, inclusive usados na escola, como forma de manter o interesse dos jovens) e a voz de um técnico de suporte a convence de que seus colegas estão envolvidos num plano de terrorismo. Além do tema de vigilância do cidadão, mais um aspecto caro à obra de Dick: à certa altura ela não sabe se a voz em seu ouvido é real ou não.
Impossible Planet
Num futuro distante, a Terra está extinta. Uma mulher aparece numa estação espacial de turismo pedindo para ser levada à Terra e oferece uma fortuna em troca. Os dois resolvem enganá-la levando-a outro planeta. Mas a situação se torna estranha quando um dos tripulantes descobre que é muito parecido com a avô da velhinha. À certa altura ele, a senhora e até o expectador passam a se questionar se eles não estão indo de fato para a Terra.
Father Thing
Father Thing é uma história estranha vinda da lavra de Philip K. Dick, mas seria uma história perfeita de Stepeh King por misturar drama pessoal com terror. Um garoto cujos pais estão se separando começa a desconfiar que seu pai foi substituído por um alienígena. Pesquisando em fóruns na internet, ele começa a desconfiar que várias pessoas no mundo todo foram substituídas. Repleto de metáforas, com uma trama na qual crianças descobrem algo que os adultos nem desconfiam, Father Thing e uma narrativa frenética, e um bom episódio.
Autofac
Num futuro distópico, os recursos naturais se exauriram. O problema é ainda mais agravado por uma fábrica, que continua produzindo produtos inúteis e consumindo todos os recursos naturais disponíveis. Resta a um grupo de rebeldes tentar destruir o local. É uma premissa interessante, com uma crítica ao consumismo desenfreado, mas é também um episódio fraco, que poderia desenvolver muito melhor as questões envolvidas.
Crazy Diamond
De longe o episódio mais confuso de toda a série. Num futuro cuja data não é revelada, a terra está sendo desgastada pela erosão, fazendo com que casas caiam no mar. Híbridos de humanos com porcos são comuns e vivem em meios aos humanos. O protagonista é um engenheiro que produz consciências para os híbridos e as rouba a pedido de um híbrida. Há uma questão não explicada a respeito de plantas cultivadas dentro das casas. Parece confuso? Tente assistir. Provavelmente ficará ainda mais confuso. É o tipo de história em que o roteirista parecia ter muita informação em mãos, mas não sabia o que fazer com elas.
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