segunda-feira, agosto 26, 2024

Oliver Twist

 


Já vi gente dizendo que queria ser roteirista de quadrinhos, mas não lia, ou lia apenas quadrinhos e, pior, só lia quadrinhos de super-heróis, ou só manga. Não é possível escrever, o que quer que seja, com o mínimo de competência, sem ser um leitor voraz, inclusive de livros.

E, entre todos os livros, existem aqueles que são leitura obrigatória por terem definido formas de narrativa. Entre eles, Oliver Twist, de Charles Dickens. O livro foi publicado em capítulos em jornais no ano de 1837, quando o autor tinha apenas 25 anos reflete a vida do próprio Dickens, cuja família passou necessidades na época em que seu pai foi preso por dívidas e os filhos tiveram que trabalhar.
O livro se passa em plena era vitoriana, quando o império britânico era o maior e mais poderoso do mundo. Mas todo esse poder e riqueza não se refletia sobre a população, que, em grande parte vivia na miséria. As péssimas condições de vida da época da são demonstradas na figura de um pequeno órfão, Oliver Twist, cuja mãe morreu de seu parto e passou a ser criado em um orfanato onde passava fome e era submetido a maus-tratos. Seguindo a ideologia científica da época, muitos dizem que Oliver, por ser filho de uma mulher sem virtudes, se tornará um ladrão e acabará na forca.
Uma das cenas mais antológicas do livro e certamente a de imagem mais forte, é a do refeitório, no qual as crianças, ao perceberem que vão morrer de fome, sorteiam um deles para pedir mais sopa (uma papa rala de cereais com cebola duas vezes por semana). O pequeno órfão é encarcerado e a reclamação é vista como mais um exemplo de que sua inclinação ao crime o levará à forca.
Depois disso, Oliver é quase colocado como limpador de chaminés (um dos trabalhos mais cruéis executados por crianças na época, já que elas eram descidas de cabeça para baixo e muitas vezes morriam por causa da fumaça ou do fogo) e acaba como aprendiz de um agente funerário, de onde acaba fugindo depois de ser vítima de uma armação.
Em sua fuga, o pequeno Oliver acaba indo parar em Londres e mas garras de um receptador especializado em adestrar crianças na arte do roubo, Fagin, o judeu (um personagem tão forte que posteriormente Dickens teve que escrever um texto tentando desfazer o anti-semitismo que o seu romance involuntariamente provocara).
E, mesmo em meio às desgraças, Oliver mantém-se sempre honesto e bom.
O livro vale tanto pela denúncia das condições sociais da época da Inglaterra à época da revolução industrial quanto pela genialidade do autor em sua narrativa repleta de ironia. Dickens é o mestre absoluto do recurso, como se observa no trecho a seguir: “Nos primeiros seis meses, após a mudança de Oliver Twist, o sistema esteve em pleno funcionamento. Foi um pouco dispendioso, a princípio, em consequência do aumento na conta do agente funerário e da necessidade de apertar as roupas de todos os indigentes, que flutuavam soltas nas suas formas encolhidas, mirradas, depois de uma semana ou duas de papas. Mas o número de inquilinos do asilo tornou-se dessa maneira reduzido; e o conselho muito se alegrou com esse resultado”.
O esquema de folhetins, precursores das atuais telenovelas, e dos quadrinhos, já existia, mas Dickens transformou-o em verdadeira literatura numa trama repleta de reviravoltas e suspense, com um protagonista ingênuo, mas bom, que se vê envolto por um destino cruel, mas triunfa no final graças à sua pureza de caráter. Lembra muito a estrutura das telenovelas clássicas, que lhe devem muito, mas nenhuma telenovela igualou-se a Dickens na crueza das descrições, nos perfis detalhados dos personagens, na crítica social e até mesmo no poder narrativo.
A sequência em que um ladrão assassina sua consorte está entre as páginas mais poderosas já escritas em todos os tempos. Os pequenos gestos, executados instintivamente, desvelam o conflito interno do personagem de forma muito mais efetiva que vários tratados de psicologia.

Existem várias versões reduzidas do livro à venda, inclusive uma da coleção O prazer da leitura, da editora Abril, que foi vendida em bancas e pode ser facilmente encontrada em sebos. Mas se puder, leia a versão integral (é possível conseguir em sebos). A necessidade de reduzir o texto faz com que a maioria das versões condensadas deixe de lado exatamente o que Dickens tem de melhor: sua fina ironia e as descrições detalhadas de personagens e ações. Mas, se não encontrar uma versão integral, leia a versão condensada: o livro é uma aula de como prender o leitor com uma narrativa folhetinesca. 

1 comentário:

ANTONIO CARLOS disse...

Na minha época de ginásio ( antiga 4° série até 8° série, década de 70), promotores de vendas entravam na escola pra divulgar as coleções de livros ( condensados ) da Editora Ediouro, eu reparei que o livro "Os três mosqueteiros" faltavam várias partes, eu era criança e condensado pra mim era leite de latinha. Só fui entender quando comprei em 1979 a edição integral dos grandes clássicos da Abril Cultural. Me lembro de que eu queria um monte daqueles livrinhos pra mim, mas sabia que minha mãe não tinha como comprar. Somente um aluno riquinho da classe fez pedidos, ninguém tinha dinheiro na turma.